MIRIAN
Conheci seu trabalho na década de 80. Sempre me referi a ela como Mirian. Só sentia que o trabalho me fascinava, emocionava! A temática, as cores, ora a sensualidade, ora a leveza, tudo prendia a minha respiração e me fazia perseguir as pinturas nos leilões quando apareciam à venda.
Comecei a juntá-las aos poucos e na medida do possível. Nunca foi muito fácil encontrá-las disponíveis. Cheguei a ter muitas, e as mostrava com orgulho às pessoas sensíveis e preparadas para enxergar.
Só não queria vender. Foram muitas saias justas... Havia pessoas que também se encantavam com as obras, e eu pedia desculpas e dizia: “Não estão à venda. Estou guardando para uma exposição”. E o dia da exposição nunca chegava. O problema era o meu ciúme! Percebi que gostaria de tê-las todas para mim, trancadas em casa ou na galeria, mas fora de olhares de cobiça. É demais, não é? Uma galerista que não quer vender... Às vezes as pessoas acham que é marketing de venda e não é. Quem me conhece bem sabe que não é mesmo.
Sosseguei um pouco quando, em 2013, mudei para um espaçoso apartamento e para lá levei minha coleção particular. Da Mirian montei uma parede inteira. Acho que são umas 25 ou 30 obras, que são apreciadas por quem frequenta a minha casa. Vocês acham muitas? Conheço colecionadores que têm 50, 80, até 100... Que inveja!
Mas agora achei que não dava mais para deixá-la fora do alcance do grande público. Ela merece ser conhecida, apreciada, andar de casa em casa e percorrer outras paredes de pessoas que também se alegrarão convivendo com a sua pintura.
O Miguel Chaia, nosso curador convidado, era um dos que não a conheciam. Viu-a na minha casa e apaixonou-se. O texto dele é o primeiro que conheço a dar luz ao trabalho da Mirian, ao fazer uma análise da sua obra.
Espero que vocês concordem comigo e curtam tanto quanto eu.
Vilma Eid
Mirian: para além da pintura figurativa
Mirian Inêz da Silva (1939-1996) desenvolveu uma trajetória marcada por algumas rupturas e tensões significativas que imprimem maior grau de interesse e de sofisticação à sua produção artística. Nascida em Trindade, Goiás, onde cursou a Escola Goiana de Artes Plásticas, migrou para o Rio de Janeiro e aí frequentou o curso de Pintura de Ivan Serpa, realizado no Museu de Arte Moderna (MAM), em 1962-1963. Ela mudou de uma cultura popular do interior brasileiro, das festividades religiosas, mitos orais, ex-votos e folguedos infantis, para uma sociedade metropolitana, permeada pela cultura de massa da música, teatro, cinema e da história em quadrinhos.
A artista iniciou a sua carreira como gravadora reconhecida imediatamente pelo circuito institucional, participando nessa condição da Bienal de São Paulo, nas edições de 1963 (VII Bienal) e 1967 (IX Bienal) e da 1ª e da 2ª Exposição da Jovem Gravura Nacional no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).
Se Mirian se transfere de uma cultura popular para uma cultura de massa, em seguida deverá deslocar-se do ambiente noturno das gravuras para o meio solar das pinturas. As xilogravuras produzidas por ela nos anos 60 possuíam grande qualidade técnica, rigor no entalhe e uma adequação orgânica das formas às contingências da madeira. O resultado justifica o seu reconhecimento no circuito das artes plásticas do país e no exterior. Com temas comuns, ligados à visualidade do cotidiano, como um cachorro, um automóvel, uma mulher na porta de casa, um barco e imagens de santos, a artista cria um universo soturno, no qual a predominância da cor preta com pequenos veios brancos produz um jogo dialético entre pausa e movimento. A forte influência expressionista, os traços decididos e o tratamento e controle da pouca luz lembram Oswaldo Goeldi. No início da sua trajetória, Mirian já estabelece um conflito ao dar uma expressão noturna ao que ocorre à luz do dia. A luz diurna é transmutada em escuridão. Também nas futuras pinturas deverão ocorrer outras tensões.
Mirian abandona as xilogravuras no final dos anos 60 e, em 1970, realiza sua primeira mostra de pinturas na Loja Residência, no Rio de Janeiro. Assim como foi uma premiada gravadora, seu desempenho como pintora também é notável, tanto que em 1983, um momento profícuo da sua produção, fez uma exposição na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro.
Uma matéria do jornal O Popular, de Goiânia, do dia 20 de dezembro de 1983, afirma o seu destaque no cenário nacional e transcreve as opiniões da artista: “Para mim pintar é vida. Pinto o que amo e sinto no coração. O povo para mim, o Brasil, são uma atração grande demais. Curto ouvir causos, música popular e o mais importante, estou muito com gente, mas não importa a escala social. Minha pintura deve muito aos grandes mestres que tive em Goiás. E no Rio, o Ivan Serpa”. Esse depoimento permite destacar os temas tratados na sua pintura (e nas gravuras): aspectos da sociabilidade no meio rural e na cidade, a cultura popular, a cultura de massa e as representações religiosas e míticas. Volta-se ao que é vivo, festivo, pulsante e corriqueiro.
Percebe-se na obra de Mirian a preocupação com uma certa brasilidade, buscada na natureza e na cultura. Em suas pinturas esses dois aspectos são representados pelas vegetações, pelo mar, pelos circos, festas e brincadeiras infantis.
Ao passar da gravura para a pintura, Mirian recupera a luz solar, escondida que estava no escuro das suas xilogravuras. Nas suas pinturas de fundo branco, a pequena forma redonda e alaranjada do sol insiste em aparecer, com frequência. Há, inclusive, uma pintura na qual no lado esquerdo há uma lua crescente e no lado direito oposto, um sol luminoso.
As suas pinturas apresentam-se em composições singelas e repetitivas, sobre madeira recortada, herança da xilogravura. Entretanto, essa aparente simplicidade merece análise, a partir de uma abordagem interna à obra. Não bastassem as tensões já anotadas, tanto na trajetória quanto na linguagem da artista, podem verificar-se novos conflitos, escondidos na superfície aparentemente calma das suas pinturas.
De imediato, pode-se destacar uma tensão que se dá permanentemente nas suas pinturas, qual seja, a convivência entre uma ordem abstrata e geométrica e uma ordem figurativa. Todas as pinturas de Mirian possuem uma estrutura geométrica nas bordas do quadro (inferior, superior e laterais) e um amplo espaço branco disponível à narrativa no centro do quadro. Assim as pinturas são constituídas por duas ordens pictóricas, dois territórios visuais, que se encontram lado a lado, a abstração geométrica das bordas e o espaço branco para a elaboração figurativa. Nesse sentido, Mirian é mais do que uma artista figurativa, sendo conveniente enfatizar seu fazer geométrico sensível, próximo da arte concreta. (Dada a ênfase de Mirian ao mestre Ivan Serpa, cabe a indagação: a artista teria entrado em contato com os integrantes do Grupo Frente, que também frequentavam as aulas de Serpa?)
Ao se constatar visualmente a presença dessas duas ordens simultâneas, desses dois movimentos de formas e cores, percebe-se que eles se complementam mutuamente e, também, se distanciam, negam-se. Enquanto composição espacial, uma parte necessita da outra; enquanto discussão de linguagem, cada qual coloca problematizações específicas e diferenciadas. Nas pinturas de Mirian, esse conflito não se resolve, mas torna-se um elemento fundamental para compreender a particularidade e sofisticação estética dos seus trabalhos.
As quatro faixas (que podem se desdobrar em outras, como se verá adiante) são livres de representação, significam por si só, mesmo que possam remeter à ideia de janelas, cortinas ou molduras. Mas, se fossem tais as equivalências das faixas, elas poderiam aparecer eventualmente. Existem algumas pinturas com cortinas encostadas nas faixas, diferenciando uma da outra. Então, as faixas não são equivalências, nem representações, são formas autônomas e permanentes que imprimem uma determinada estruturação da pintura, compondo a sua totalidade. Veja-se que as faixas não apenas são formalmente diferentes dos acontecimentos visuais do plano branco, mas, como grande colorista que é, a artista dá um tratamento de cor diferente para essas duas ordens estéticas. As faixas são feitas em cores escuras e tons baixos, enquanto as formas/figurações do plano branco possuem cores claras, vibrantes e brilhantes. Além do mais, as faixas atraem e retêm a luz das cores, enquanto as formas/figuras do plano branco emitem e expulsam a luz. Mirian está tratando de duas esferas distintas e opostas que estruturam conflituosamente os seus quadros.
Para efeito de aproximações, percebe-se que a paleta de cores das faixas geométricas remete a Iberê Camargo, enquanto as cores utilizadas para a elaboração do plano figurativo – onde cores brilhantes contrastam com o fundo – lembram Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. Além do mais, Mirian parece retirar de Tarsila os volumes e traçados curvos e sintéticos utilizados para compor as suas vegetações, morros, nuvens e ondas do mar.
Quando a narrativa no espaço branco ocorre em ambiente externo, Mirian coloca dois pequenos semicírculos azuis nos cantos superiores da pintura, simbolizando o céu. Dessa forma, algumas composições lembram um nicho ou uma arquitetura bizantina que acolhe as personagens da narração. Cria-se, assim, devido às pequenas curvaturas, um ambiente de espiritualidade.
Pode-se pensar o uso das faixas como um esforço construtivo para compor as pinturas, valorizando o plano e a ausência da perspectiva. Tanto as faixas quanto as figurações encontram-se no mesmo plano pictórico; são elaboradas com controle e com justa definição de fronteiras entre formas e cores. Por isso, sem a presença de um ponto de fuga, as imagens (desenhadas com aparente simplicidade) geralmente são frontais, como também são as faixas. Tão equivalentes são essas duas ordens e esses movimentos que, de imediato, apreendemos uma unidade baseada na geometria emanada das faixas, que impacta a ordem figurativa, tornando-a mínima e eliminando o naturalismo e o realismo nas pinturas. A especificidade da linguagem de Mirian caminha numa direção construtiva.
Assim, pode-se afirmar a existência de uma unidade híbrida, de convivência entre diferentes, imprimindo particularidade à sua obra. A dimensão geométrica pode ser reforçada ao se observar que grande parte das pinturas de Mirian se faz por espaços horizontais sobrepostos. Ao se iniciar o olhar pela parte inferior da pintura, a primeira camada é sempre a faixa autônoma, em seguida geralmente pode ocorrer a faixa horizontal do chão/terra. Algumas vezes esta segunda faixa pode ser aquela que representa o mar ou o ar. Por fim, chega-se à ultima faixa, geralmente autônoma, e a sugestão do céu são os pequenos semicírculos azuis laterais.
Diante da imobilidade das faixas e do fundo branco, nas cenas criadas pela artista os personagens estão sempre em ação. Mirian capta um momento de acontecimentos dinâmicos: passeios, festas, namoros, atos religiosos, danças, mesas de bar e espetáculos diversos. Há um certo aspecto trágico na constatação de que o movimento fugaz, passageiro, mutável, da dimensão figurativa ocorre junto a um mundo inflexível, rígido e permanente da dimensão geométrica. Diferentemente da percepção visual de movimento que se verifica nos registros do cotidiano, nas cenas religiosas predomina a percepção de estabilidade.
Na sociedade e na estrutura da pintura de Mirian existem conflitos agônicos, irredutíveis. Talvez se possa pensar que suas pinturas não expressam apenas a alegria de viver ou a celebração da vida. Por que não considerar, sob uma perspectiva trágica, que Mirian elabora sua transparente, vazada e flutuante figuração, como um desejo de vida plena, na constatação ou suspeita de que estruturas fortes e permanentes podem ser obstáculos ou limites ao bom encaminhamento do que ocorre no cotidiano? Talvez por isso a recusa da perspectiva, do naturalismo e do realismo. Talvez por isso suas figuras geralmente flutuam no espaço branco. Talvez por isso seja necessário sair do cotidiano e buscar auxílio no religioso e no mítico – dar vida às sereias, reconhecer a possibilidade de voar ou planar no ar, buscar o prazer de uma mesa de bar ou de um jogo de cartas, equilibrar-se num fio ou em um cavalo a galope. Nas mitologias e na religião Mirian busca a saída para Ícaro continuar seu voo ou para Adão e Eva continuarem a sua peregrinação. A perda do paraíso pode ser pressentida em vários dos seus trabalhos.
Tendo que situar-se entre diferentes conflitos, a obra de Mirian é permeada por alguns paradoxos. Um deles tem como centro a “mulher de vestido vermelho”. Assim como é numerosa a série de pinturas de cunho religioso (exemplar dessa temática é a pintura Cristo crucificado, em que este é ladeado por dois anjos, de 1981), também é destacável a questão do feminino. A artista, várias vezes, cruza os temas da religiosidade e da sensualidade, como ocorre nas pinturas que representam Adão e Eva, nus e sensuais, como mostra a pintura Adão e Eva (1992). Ou então a artista insiste no tema do encontro de casais (Gabriela e Nassif [1978] e Casal [1995]). Mas essa questão torna-se potente quando Mirian apresenta a mulher de vestido vermelho, ostensivamente presente em cenas de bares, danças e festejos. Veja-se a pintura Geni e o homem do Zepelim (1981), na qual a mulher de vestido vermelho coloca-se numa posição decidida e altiva, desafiadora e disposta ao enfrentamento contra o homem e a máquina. Esta questão do feminino, às vezes abordada com humor, perpassa inclusive os trabalhos com o tema das sereias.
A postura, a sensualidade e o cenário que envolve a mulher de vestido vermelho são uma pista para aproximar as pinturas de Mirian aos recursos do teatro.
A exposição da Galeria Bonino, em 1983, contou com várias pinturas que se referenciam pelo teatro: Eles não usam black-tie, Gabriela, cravo e canela, Teatrinho azul e O circo voador. Além do mais, Mirian produziu várias pinturas focando cantores populares da música brasileira, como Dalva de Oliveira, Elba Ramalho, Gal Costa, Ney Matogrosso (em representações bastante sensuais) e Chico Buarque (em postura intelectual).
A aproximação entre os trabalhos de Mirian e o teatro pode ser reforçada, ainda, ao se observar que as faces das figuras pintadas pela artista parecem máscaras teatrais. Seres humanos e animais portam uma máscara congelada e repetida, com muita maquiagem, bochechas rosadas e lábios destacados. Suas pinturas apresentam o mundo acontecendo em uma boca de cena. A ação figurativa dada no espaço branco e luminoso não é real, mas sim uma representação possível. O clima é onírico, flutuante e lúdico – tudo é desejo buscando expressão visual.
Temos, então, um paradoxo brechtiano: Mirian não quer nos enganar com suas pinturas, elas são alegorias e não pretendem ser nem realistas nem naturalistas. A partir do conflito entre ordem abstrata geométrica e ordem figurativa, a obra de Mirian pode ser entendida como uma dimensão intermediária para se pensar a arte e a vida. Suas pinturas permitem problematizar a linguagem na arte e, simultaneamente, passar a visão de uma observadora da vida das pessoas e da sociedade brasileira.
(São Paulo, janeiro de 2015)
Miguel Chaia