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12.09.2020
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INTRODUÇÃO

Já faz tempo que André Ricardo frequenta a Galeria Estação, tendo, inclusive, feito uma brilhante participação em um dos nossos bate-papos.

Jovem determinado, demonstrava o desejo de trabalhar conosco, o que pôde acontecer em outubro de 2019.

Seu talento e seu domínio técnico já eram evidentes. Arrojado, procura seu caminho com muita pesquisa e constante contato com seus pares.

Jovem culto, estudou e ministra um curso permanente no Sesc.

Sua obra é rica de símbolos e imagens.

Neste período, quando a maneira de mostrar é uma novidade, aí está a exposição dos trabalhos recentes do André Ricardo, on-line.

Aproveitem

 

Vima Eid

texto

“Só sei que foi assim”


“As ondas cobrem, para depois revelar... pensei isso hoje, enquanto observava o mar na Praia dos Lavadores em Gaia, Portugal.


Porto, 21 de novembro de 2010


Anotação feita durante o período de intercâmbio que realizei na Universidade do Porto


Gosto da ideia de que a pintura se pensa no fazer, no processo orgânico que se dá de dentro para fora. É no curso da experiência que adentramos a dimensão imensurável, abissal, da criação poética. Lugar em que se entrelaça tudo que nos constitui enquanto sujeitos, onde nossa relação com o mundo se ressignifica. Uma pintura não é um acontecimento isolado, mas parte de um fazer ininterrupto, adensando-se ao longo do tempo num processo acumulativo, tal qual a ação das ondas sobre as pedras.


Uma rocha coberta pelas águas ressurge inesperadamente na superfície, voltando a submergir logo em seguida. Ela não se detém em uma apreensão definitiva, assertiva. Percebo uma analogia muito bonita entre esse movimento da natureza e o processo de criação. Uma pintura é sempre a possibilidade de lançar um lampejo de luz em direção àquilo que está submerso em nossa consciência.  A obra orbita, nesse campo sem gravidade, em torno de algo que nunca se dá por inteiro, buscando tateá-lo. Mas é aí, justamente nesse mistério, que talvez resida sua beleza.


Ao longo desses mais de dez anos de trabalho ininterrupto como pintor, posso afirmar que as ideias mais assertivas que pude formular foram aquelas que se deram depois da obra realizada, não as que busquei elaborar previamente. Nesse sentido, percebo que a pintura caminha na minha frente, é ela que abre as portas de uma trilha que se sedimenta lentamente, no exercício contínuo do ateliê. Nos momentos em que me adianto, sinto que as portas se fecham, obliterando a passagem da luz, elemento essencial na dimensão da visibilidade inerente a pintura, mas também no sentido metafórico do conhecimento.


Nesse campo arenoso onde as dúvidas são mais produtivas que as certezas, tomei como estratégia adotar pontos de partida que me fossem mais próximos, cotidianos. Alimentar a prática da pintura a partir desse lugar foi a forma que encontrei para realizar uma obra em que pudesse me reconhecer enquanto autor. Aí talvez resida certo tom de crônica visual no qual se percebe a elaboração de um universo imagético constituído no deslocamento pela cidade, na contaminação de um repertório de imagens que se funde com a paisagem ou, não raro, oriunda de memórias da infância.


A esse respeito, não posso deixar de mencionar um dado biográfico muito marcante, o nascimento de minha primeira filha, Dandara, em 2017. A experiência da paternidade marcou um novo ciclo em minha vida, sendo, sem dúvida, um ponto de inflexão também no meu trabalho como artista. O ato de cuidar, ninar, brincar passou a fazer parte da rotina da casa, e isso tudo foi escavando, em algum lugar da minha memória, recordações dos tempos de criança. A cada dia, Dandara me ensina a olhar o mundo sob um prisma lúdico, me fazendo enxergar a pintura de modo mais divertido. Muitas vezes, coloco papéis e tintas no chão e fico ali um tempo brincando com ela. Nesse momento íntimo e despretensioso, observo a relação desimpedida que ela estabelece com as cores e a matéria pictórica. Me encanto com sua imaginação aberta à expressão espontânea.


Toda essa percepção acerca do fazer poético, da convivência com Dandara, se somou ao contato com a produção de arte popular, assunto que vem despertando meu interesse nos últimos anos. Ao me aproximar de artistas oriundos desse campo dito “não erudito”, como Véio, Chico Tabibuia, Neves Torres, Nino e tantos outros mestres da nossa cultura, percebo com entusiasmo a manifestação de um sentido essencial da arte, no qual o processo de criação surge como uma necessidade vital, preservando seu potencial transformador.


Essa dimensão do popular se estende para manifestações de outras ordens, não propriamente do campo reconhecido como artístico. Eu me refiro às expressões de ordem estética que estão ao nosso redor, na rua, nas festas, na fachada de uma casa popular, como aquelas registradas pela fotógrafa Anna Mariani entre os anos 1970 e 1980, ao longo de suas expedições pelo Nordeste brasileiro.[1] De autoria desconhecida e, geralmente, realizadas em regiões de profunda desigualdade social, essas fachadas são dotadas de uma inteligência plástica sofisticada que se expressa pela elaboração de engenhosos padrões geométricos, na recorrência de temas figurativos resolvidos de modo esquemático e, não menos importante, pela adoção de combinações cromáticas variadas e surpreendentes. Essas fachadas são exemplos reveladores da importância do prazer estético na vida cotidiana e nos convidam a repensar o sentido da prática artística para além do sistema dominante definido como “erudito”. Ao mesmo tempo, nos lembram que “Brasil não é só Ocidente, é também África e Oriente”, como bem definiu Lina Bo Bardi ao comentar sobre essas mesmas fachadas.[2]


As obras desses artistas e construtores cala muito fundo em mim, pois me reconheço nesse universo, é como se fossem portadoras de uma herança plástica que me atravessa, trazendo à tona minha ancestralidade enquanto homem negro. O que tenho feito, desde então, caminha no sentido de tatear esse saber que considero fundante de minha sensibilidade estética, dimensão íntima e coletiva, simultaneamente.


O conjunto de trabalhos reunidos nesta exposição fala muito sobre esse momento. Diferente das séries que realizei anteriormente, em que a forma se desdobrava num processo de depuração a partir de determinado tema, este grupo de pinturas se caracteriza por uma diversidade maior de assuntos, sendo esses representados de maneira icônica, o que lhes confere certo arcaísmo, um gesto de suspensão do tempo. A esse vocabulário plástico, somou-se a investigação da pintura a têmpera, técnica que me possibilita experienciar a cor com um grau de pureza intenso. Essa relação, por sua vez, me remete tanto a uma cultura cromática que identifico no âmbito popular, como também a recordações da infância, período em que a relação com o mundo, não só com a cor, tende a ser mais instintiva. É preciso deixar que a natureza nos invada e nos diga algo secreto que está contido em seu movimento natural e silencioso. Assim como no fluxo da maré, retorno à lição do mar com que iniciei este texto. Trazida pelas ondas em uma tarde epifânica, uma mensagem foi sussurrada em meus ouvidos: “As ondas cobrem, para depois revelar”.


André Ricardo


 


[1] MARIANI, Anna. Pinturas e Platibandas: fachadas populares do Nordeste brasileiro. São Paulo: Mundo Cultural, 1987.


[2] Idem.

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