No ano em que comemora duas décadas de atividade, a Galeria Estação apresenta na ArtRio um conjunto de 50 obras, entre pinturas, esculturas, objetos e gravuras, realizadas a partir de 1960 até hoje, por 12 artistas. A seleção reúne autores que atuam em momentos históricos diferentes, vindos de contextos sociais diferentes e com formações culturais também diferentes. Isso constitui uma variedade de linguagens e de repertórios que caracteriza parte importante da atuação pública de Vilma Eid, desde que a marchand e colecionadora inaugurou sua galeria em São Paulo, em 2004, com uma pesquisa sistemática sobre produções antes chamadas “populares” e com iniciativas diversas para inscrevê-las no circuito da arte contemporânea. Pois a seleção que a galeria expõe agora na ArtRio é um pouco uma síntese dessa história.
No estande organizado pela Estação, encontram-se nomes importantes da arte brasileira que iniciaram trajetória na segunda metade do século XX – como Amadeo Lorenzato, Antonio Poteiro, Chico Tabibuia, Itamar Julião, Júlio Martins da Silva, Mirian Inêz da Silva Cerqueira e Nino –, ao lado de artistas jovens, cuja produção conquista, hoje, uma projeção pública crescente – como ocorre com Deni Lantz, Higo José, Rafael Pereira, Renato Rios e Santídio Pereira. Dessa junção, sobressaem, sem dúvida, as singularidades de cada obra e as convergências possíveis entre uma e outra. Mas, de maneira geral, tornam-se igualmente notáveis as transformações nos critérios de escolha, na classificação e na circulação do trabalho de arte no país, por meio de um processo amplo e ainda em curso, desde pelo menos a década de 2000, em que a Galeria Estação exerce papel significativo.
Destacam-se neste conjunto, por exemplo, as pinturas – raras, valorizadas nas décadas de 1970 e 1980, mas pouco conhecidas, ainda, no cenário artístico atual do Brasil – de Julio Martins da Silva. Estão aqui obras representativas da produção do artista, sobretudo a partir dos anos 1960, marcada pela minúcia de suas paisagens, de fatura, em geral, lisa, e compostas por uma simetria meio desequilibrada, com extensões compridas de linhas curvas e formas seriadas (que fazem as vezes das flores, dos galhos, das copas das árvores, dos elementos arquitetônicos etc.). Aliás, algo dessa atenção aos motivos decorativos talvez possa ser comparado à meticulosidade com que Rafael Pereira, artista de 38 anos e autodidata como Julio Martins, se dedica à representação de espaços, seres e objetos, sem que isso requeira obediência a volumetria, proporções e perspectiva.
Há semelhanças e contrastes, também, na comparação entre as obras de Itamar Julião e Higo José. A começar pelo movimento ascensional que marca a escultura de ambos e pela figuração econômica, elementar, característica tanto das operações de Itamar Julião quanto dos bordados de Higo José. Por outro lado, Julião constrói suas colunas de animais em monólitos, em uma única peça de madeira, enquanto Higo produz e empilha, uma a uma, suas “pedras” feitas de espuma e linha, como se fossem pequenos monumentos, menires, dolmens, que embaralham as qualidades de peso e leveza, rigidez e maciez, regularidade e aspereza, na discordância entre a aparência e a materialidade das peças. Para a figuração de seus animais, Julião esculpe formas robustas e austeras, ao passo que José o faz, no bordado, com pensamento linear e com base em pinturas rupestres de sítios arqueológicos da região da Serra da Capivara, no Piauí. Alguns desses seus bordados alusivos ao paleolítico compõem também a individual Timeless Threads, que Higo José apresenta, neste momento, na Espasso, em Nova York, nos Estados Unidos, até 8 de novembro.
Num cotejamento rápido entre os trabalhos de Amadeo Lorenzato e Deni Lantz apresentados pela Estação na ArtRio, é curioso notar, de imediato, como, de um lado, a figuração do primeiro parece ter no horizonte uma relação com o abstracionismo – em razão do emaranhado de suas linhas que representam o entrelaçamento de galhos de árvore, ou do derramamento de vermelho que torna as folhas de sua vegetação pendentes –; e, na contramão, a pintura atmosférica do segundo sugere paisagens, ou espaços amplos, abertos, em meio a pinceladas que distribuem a tinta de maneira esparsa, aérea, por suas superfícies. Se Lorenzato é hoje uma referência importante da arte moderna brasileira, dez anos atrás sua produção era praticamente desconhecida no país, com visibilidade restrita ao ambiente cultural de Minas Gerais. Um parâmetro para mensurar tal fenômeno é o fato de a primeira mostra individual do artista em São Paulo ter sido realizado somente em 2014, pela Galeria Estação. Deni Lantz, por sua vez, amplia aos poucos a circulação de seu trabalho em âmbito internacional, principalmente depois de realizar uma residência de dois meses, entre maio e junho passados, pelo programa da Residency Unlimited, em Nova York.
Vale relacionar, por fim, a importância que as cores exercem na obra escultórica de Nino e nas experimentações gráficas de Santídio Pereira, duas produções, de novo, bastante específicas e bastante diferentes uma da outra. Sim, Nino tem uma obra polimórfica, que dá a ver figuras e cenas variadas a cada ponto de vista, embora constituam-se de monólitos; enquanto a obra de Santídio apresenta-se em plano bidimensional e com uma frontalidade inequívoca, radical, seja na impressão das xilogravuras, seja na madeira pintada, em que o contorno de folhas e flores surge no recorte, incisão e encaixe de duas ou mais chapas. De volta às cores, Nino confere a suas estruturas leveza, afeição e um caráter lúdico por meio de combinações de rosa, azul, amarelo, vermelho e verde, que por vezes desenham e dinamizam suas superfícies com listras e círculos. Já as escolhas cromáticas de Santídio intensificam seus elementos já tão diretos. Forma e cor são uma única coisa, e adquirem força expansiva, à medida que vivificam suas “paisagens férteis”. A propósito, essa descrição sobre o aspecto fulgurante do trabalho intitulou a recente exposição do artista (Santídio Pereira: paisagens férteis), no Museu de Arte Moderna de São Paulo, encerrada em agosto passado.