encerrado
21.10.2020 a 30.10.2020
online | Paris - France

INTRODUÇÃO

Conheci Alcides no início dos anos 90. Fazia pouco tempo que elechegara a São Paulo, vindo de Mato Grosso, onde morava desde 1950. Nasceu na Bahia, e essas várias mudanças de paisagem foram influenciando o seu trabalho.

Em São Paulo, veio para morar com uma filha, em uma favela da Zona Leste. Essa nova moradia sempre chamou a minha atenção porque eu ficava imaginando a grande transformação que se operava na vida e na cabeça dele. De uma vida em um lugar onde a natureza é abundante, ele passou a conviver como trânsito e a poluição da nossa cidade.

Alcides era um homem muito humilde, com uma grande fé e uma bondade quase incomum nos tempos atuais.

No primeiro ano dele em São Paulo, senti que sua obra estranhava esse novo habitat e procurava um caminho que ele mesmo pudesse reconhecer. Eu ia quase todos os meses à sua casa para vê-lo trabalhar e adquiria suas pinturas, que ainda sentia estarem em nova fase de busca. Mas queria incentivá-lo a continuar porque tudo que eu via mostrava o grande pintor que ele era.

Um dia ele veio ao meu encontro trazendo uma tela que representava um avião. Fiquei muito surpresa, já que aquilo era uma novidade na sua obra. O avião era maravilhoso! A composição, as cores, o geometrismo, tudo muito bem resolvido. A partir desse momento ele deu início a uma grande série de meios de transporte. Eram caminhões, motos, aviões, trens. Deixou para trás as paisagens mato-grossenses, maravilhosas, e reencontrou o caminho que, me parecia, ele intuitivamente procurava.

Eu comprava todos os seus trabalhos, e aos poucos consegui introduzi-lo no difícil circuito cultural paulistano.Sua pintura esteve presente na Mostra do Redescobrimento, 500 anos, na Fundação Bienal de São Paulo, no módulo de arte popular. Alcides passou a ser conhecido e sua obra, admirada.

Em 2007, com a Galeria Estação já em funcionamento, achei que era a hora de fazer a sua primeira exposição individual. Ele compareceu e ficou muito feliz por conhecer pessoas que admiravam o seu trabalho. Recebeu o reconhecimento da imprensa através de uma bela matéria no Caderno 2 do jornal OEstado de S. Paulo, assinada pela jornalista Camila Molina. Mas jáestava debilitado, e trêsdias depois faleceu. Foi uma grande tristeza!

Alcides não viveu para ver a continuação do reconhecimento do seu talento. Em 2010, Paulo Sérgio Duarte colocou-o lado a lado com um trabalho do Nuno Ramos na exposição Arte Brasileira: além do sistema. Em 2012, suas pinturas participaram da exposição Histoire de voir na Fundação Cartier, e hoje fazem parte do acervo da instituição. Ainda em 2012, Alcides participou de outra exposição coletiva, em Nova York, na Andrew Edlin Gallery. Há obras suas no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Museu AfroBrasil, no Pavilhão das Culturas Brasileiras e no MAM do Rio de Janeiro, coleção Gilberto Chateaubriand.

Por tudo isso, apresentar o trabalho do artista tem um sentido especial para nós. É um tributo a Alcides Pereira dos Santos, nascido na Bahia em 1932 e morto em São Paulo em 2007.

Saudade!

Vilma Eid

 

MAIS INFORMAÇÕES

A 8ª edição da Outsider Art Fair Paris acontecerá de 21 a 30 de outubro de 2020, acontece online e presencial em Paris.

texto

As poéticas máquinas de Alcides


A imagem ocupa sempre, quase até as bordas, a superfície pintada. Plana, suportada por uma sofisticada geometria que afasta qualquer aspecto naïf do trabalho. Alcides intuitivamente incorporou a verdade planar da pintura moderna que atravessa boa parte da sua obra até as últimas telas. Como trabalha com máquinas imaginárias inspiradas em veículos de transporte, no caso das obras escolhidas para esta exposição, a obra solicita a dualidade figura/fundo. Eventualmente surge uma sugestão de volume, mas Observem qualquer das telas aqui presentes. Uma das motocicletas, por exemplo, Viagem e turismo Honda, 1999. A máquina inventada se impõe, de cima a baixo, de um bordo lateral ao outro, ocupa a tela utilizando relativamente poucas cores – amarelo alaranjado, preto, castanho, vermelho e um rosa no para-lama traseiro. Retas e curvas bem traçadas desenham a fisionomia da máquina colorida, mas surge, no fundo, outro acontecimento plástico, de caráter inteiramente distinto da comemoração da tecnologia de transporte. Uma pequena festa florida de tons azul e branco, esta está quase sempre achatada, colada à superfície. Uma espécie de lei da frontalidade, aquela tão presente nas figuras pintadas do Egito Antigo, é aplicada, mas aqui as figuras se aproximam mais dos perfis de modernos desenhos técnicos. Essa estrutura será ativada por uma paleta variada.


Acontecimento semelhante se repete no caminhão Fessi, 1996. Um rigoroso traçado de linhas retas e curvas descreve a máquina sem qualquer excesso em detalhes. Trata-se de um caminhão com um guindaste autoportante que traça um triângulo de modo a realizar a completa ocupação da superfície. O engenho mecânico, de novo, alcança todos os bordos, colocado sobre uma base na qual poderíamos adivinhar a projeção de outro veículo visto de cima, mas isto já é uma especulação muito imaginativa. Como sempre, a invenção de Alcides contraria nossa experiência cotidiana.


O retângulo que corresponde ao chassi é amarelo vivo, interrompido apenas pelos três eixos da máquina. A cabine é objeto de um exercício gráfico geométrico. O fundo azul-claro aparece como um céu com muitas pequenas nuvens que de novo contrasta em sua liberdade expressiva com o rigor do desenho e o colorido do objeto tecnológico.


Para não recuarmos a Leonardo da Vinci e sua formidável engenharia imaginária no esforço de antecipar possíveis realizações tecnológicas da humanidade, basta recuarmos ao século XIX e lembrarmos a arquitetura dos engenheiros que antes dos arquitetos exploram o potencial plástico do aço criando formidáveis estruturas, como o Palácio de Cristal, 1851, em Londres, de Joseph Paxton, passarmos por diversas proezas e culminarmos com a gratuidade comemorativa da Torre Eiffel, 1887-89. Arte e técnica estiveram juntas em diversas aventuras e, ainda na segunda década do século XX, os futuristas italianos iriam, deslumbrados, realizar em obras de arte seu elogio, sobretudo na velocidade propiciada pelos motores, e a dissecação do movimento humano e animal permitida pelos novos estudos fotográficos de um Marey ou de um Muybridge. O centro de interesse plástico dos futuristas era a velocidade ou as descobertas do movimento animal propiciadas pelas imagens em sequência da máquina fotográfica. Alcides imagina suas máquinas como modelos técnicos absolutamente estáticos, como se estivessem prontos para saltar da tela e se tornarem uma realidade no mundo. São absolutamente soberanos, por isso ocupam todo o espaço da tela, dando um aspecto secundário ao ambiente que os recebe. Talvez por isso mesmo, este ambiente ou fundo recebe um tratamento pictórico contrastante. Essa monumentalidade que adquirem as máquinas de Alcides é inédita, e não encontramos ocorrências semelhantes seja na arte popular, seja na erudita.


Paulo Sergio Duarte

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