Bernnô
O José Bernnô, artista que infelizmente não conheci, entrou na minha vida e na minha coleção através de dois queridos amigos.
O primeiro deles é Rodrigo Naves, cujo artigo publicado em página inteira no Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, em 19/8/2008, chamou muito minha atenção. Rodrigo nos mostrou que ali estava um artista pronto para ser recebido pelos apreciadores da pintura.
Com talento e uma obra já madura, meu outro querido amigo, Maurício Buck, e sua mulher Leila fizeram a primeira exposição de Bernnô no Escritório de Arte Mauricio Buck, com curadoria do Cauê Alves.
Muito impressionada com a obra, comprei um trabalho. Mas, a cada vez que eu via os trabalhos de Bernnô expostos, não resistia e comprava mais um e mais um, e de repente eu tinha cinco. Cada vez que olho para eles vou descobrindo uma coisa ali, outra acolá, gostando sempre mais desse convívio.
Bernnô nasceu talentoso, mas trabalhou muito para que o seu talento fosse reconhecido. Fez Faculdade de Belas Artes em São Paulo, foi aluno dos pintores Paulo Pasta e Marco Giannotti, além de ter feito curso de História da Arte com Rodrigo Naves.
O Maurício preparava uma mostra de desenhos para o MAM quando José Bernnô teve um AVC. Peças que a vida prega! Com toda uma carreira pela frente, vai-se embora o homem, o artista.
Alguns anos depois, o Mauricio fechou seu escritório de arte e me convidou para dar continuidade ao trabalho iniciado com sucesso. O contato com os filhos, Michely e Tiago, foi o empurrão que faltava para o meu mergulho. A alegria deles foi tão grande com a oportunidade de mostrar as obras que o pai deixou que eu nem podia pensar em não ir em frente com o projeto.
O Marco Giannotti, além de professor, foi amigo muito próximo do Bernnô. Por isso, nada mais natural do que convidá-lo para a curadoria. Testemunhei a sua emoção ao ser chamado. Seu texto mostra a familiaridade com a obra e com o amigo.
Pronto, cá estamos nós nesse tributo ao Jose Bernnô, mostrando o que ele batalhou tanto para conseguir. Ele se foi, mas a sua pintura ficou.
Vilma Eid
Matéria calcinada
Marco Giannotti
Quem teve o privilégio de conhecer José Bernnô com certeza o definiria como uma personalidade solar. Fui seu professor e sobretudo amigo. No ano de seu falecimento, passou o réveillon com minha família. Em dias de forte calor e chuva, sua principal diversão foi ensinar meus filhos a fazer pipas. Nada mais coerente para quem sempre gostava de fazer a cor decolar. Quem teve o privilégio de conhecê-lo também sabia que ele era uma pessoa esquentada, um vulcão emotivo prestes a explodir a qualquer momento.
Torna-se artista não na sala de aula, mas no Bairro do Limão. Foi ali que descobriu que poderia aliar a experiência de pintor automotivo com a de pintor de quadros. Às 18 horas fechavam-se as portas e o artista despertava madrugada afora. Não é à toa que sua exposição mais contundente em vida foi na própria oficina. Bernnô soube aliar suas inquietações contemporâneas ao espírito comunitário. Sempre participou das atividades do seu bairro, chegou a realizar as alegorias para a escola de samba Mocidade Alegre. O pintor do Limão nos faz lembrar do pintor do Cambuci, Volpi. Como ele, realizou no início da carreira afrescos decorativos. O teto de sua sala, em um conjunto habitacional, nos levava ao mundo onírico da pintura italiana e seus grotescos.
As pinturas selecionadas para esta exposição são o registro de uma personalidade forte. De imediato o que vemos são pinturas de superfícies cromáticas intensas entrecortadas de maneira lancinante. A fatura é exacerbada e instigante. Bernnô soube fazer uma alquimia entre a pintura a óleo e as resinas alquídicas utilizadas para fins automotivos. Quando estudava na Escola de Belas Artes de São Paulo chegou a fazer pintura personalizada para automóveis. Talvez por isso é que sua paleta nos faz lembrar da época em que os carros ainda tinham cor: Brasília amarela, Corcel azul, Variant bege etc. Soube fazer da cor emoção: podemos ver em suas pinturas um fragmento de amarelo angustiado, noutra parte um azul apaixonado, noutro canto um laranja entristecido. A matéria pictórica aparenta ter passado por um processo de calcinação ao ser submetida ao calor intenso de um forno industrial. Formas geométricas se reconfiguram nesse processo e assumem um aspecto orgânico, rochoso. Aludem ao magma, que, ao esfriar em contato com a terra, apresenta veios líquidos das mais variadas formas. As figuras parecem surgir a partir da matéria vulcânica.
Evocar uma pintura calcada à superfície pode soar como jargão modernista. Mas o fato é que Bernnô faz desse mote razão de ser. Se buscarmos uma referência, certamente a obra de Clifford Still é basilar. Suas pinturas em larga escala, com um cromatismo imponente, formas orgânicas que se chocam, influenciaram muitos artistas do expressionismo abstrato. Talvez sua contribuição mais importante para esse grupo tenha sido o “all over”, uma composição que rompe com a relação clássica de figura e fundo. A pintura se desvela como um espaço contínuo, onde o enquadramento aparece como um recorte de um lugar mais amplo. De maneira intuitiva Bernnô assimilou essas características em sua obra. Ele não é um artista que busca uma pintura tonal refinada, como Paulo Pasta, artista e professor importante na sua formação. Aliás, talvez tenha sido influenciado pela sua pintura inicial, onde a superfície mais bruta era feita ao escavar a matéria oculta. Um vestígio azul aflora numa superfície vermelha. Mas, em vez de evocarem um passado longínquo, são cores do mundo, dos cartazes, automóveis, utensílios. Surge daí uma pintura calcada na superfície da tela de maneira obstinada. Não temos acesso à trama da tela, pois ela foi efetivamente calcinada por um revestimento imune à agua e às novas marcas do tempo. Embora as cores gritantes nos levem a pensar em Van Gogh, a pintura não é feita com pinceladas que carregam a cor pura recém-saída de um tubo de tinta. O gesto se esconde nas superfícies laminadas.
Suas pinturas resistem à palavra, denotam até um certo brutalismo que nos faz pensar nas estruturas pintadas de vermelho que sustentam o MASP. Colocam-se no espaço sem timidez. Como no concreto armado, exibem as marcas do seu processo de fundição. Crostas emergem desse magma. Curiosa alquimia na qual a pintura a óleo perde seu aspecto óptico e adquire massa graças aos complementos alquídicos. O processo construtivo em muito se assemelha ao processo da colagem, método compositivo que é determinante na maneira de articular imagens a partir do século XX. Em um momento importante de sua formação ele chegou a pintar em caixas desmontadas de papelão. Nesse caso, os recortes se agrupam fortuitamente e criam uma sensação de unidade maior do que a soma das partes. Campos cromáticos assumem um aspecto de figura quase por acaso, de modo que passamos a imaginar uma geometria que volta a se encontrar com o espaço do mundo. Por esse motivo não encontramos nem linhas retas nem quadrados perfeitos em sua pintura. As hastes verticais que aparecem de vez em quando nos fazem lembrar os postes corroídos pelo tempo e que estão prestes a cair após um temporal. As marcas do horizonte não nos levam ao mundo sublime, são como as simples marcas feitas com esmalte em uma oficina mecânica para evitar a sujeira. Bernnô celebra assim a riqueza do mundo comum, onde qualquer um pode participar, entrar em sua oficina e tomar uma cerveja.
Tudo parece estar um pouco fora da ordem: linha, cor, a matéria bruta. O belo advém desse estranhamento criado entre o popular e o erudito. Nesse sentido, a exposição que se inaugura na Galeria Estação me parece muito apropriada, pois justamente neste lugar é que a arte popular brasileira é apresentada lado a lado com artistas relevantes do nosso cenário. No caso de Bernnô, não caberia uma comparação com outro artista popular, pois ele busca incorporar esses dois mundos distintos. Figura singular, tentava conciliar os mundos opostos da Zona Norte e da Zona Sul de São Paulo.
Certa vez Eduardo Sued comentou que o problema do amarelo é que trata-se de um sujeito muito alegre e aberto, mas logo se torna uma visita incômoda na casa. Bernnô convive muito bem com essa cor. Quando vemos um amarelo em sua pintura sentimos um prazer especial ao evocar sua personalidade solar. Poucos artistas efetivamente souberam utilizar tão bem essa cor em uma cidade como São Paulo. Embora o cinza seja a cor mais atribuída a nossa cidade, o fato é que temos uma metrópole permeada pelo vermelho do tijolo baiano, pela cal do pó xadrez nas fachadas, pelos azulejos quebrados, pelos cartazes coloridos colocados de modo precário nas avenidas.
Ensinada nas escolas, a cor parece um fenômeno imaterial, um prisma virtual lançado no escuro. Entretanto, a cor efetivamente está ligada ao seu meio material. Na arte moderna a escolha de determinadas técnicas é um ato expressivo, a matéria pictórica torna-se expressiva. Ao final do século XIX, a introdução de corantes e pigmentos criados a partir de processos químicos produziu uma enorme transformação na paleta do pintor, que passa a conter cada vez mais cores artificiais. As cores aplicadas na pintura se distanciam cada vez mais das cores locais, são signos que formam uma linguagem autônoma. A procura por uma nova composição pictórica fez com que os artistas se apoiassem em teorias cromáticas como as de Goethe, Chevreul, Ostwald. Os artistas buscam certas medidas ideais que revelariam uma natureza oculta, ideal, suprema. As cores para o artista são antes abstrações do nosso espírito. Surge daí um simbolismo hermético, distante da representação da natureza. Boa parte dos experimentos cromáticos foi realizada com pedaços coloridos de pano ou de papel. Não por acaso, a colagem surge efetivamente como uma prática artística no século XX. As portas se abrem para uma pintura abstrata pautada numa geometria cromática, grades e círculos. A figura e o espaço circundante são construídos a partir de diversos planos cromáticos, pincelada e cor se fundem num gesto expressivo. Nesse caso, as cores efetivamente desempenham um papel ativo no espaço pictórico, visto que a interação entre os campos proporciona uma sensação expansiva da cor. Nesse processo de distanciamento em relação à “realidade exterior” o pintor se identifica muitas vezes com um ser capaz de tudo criar ou destruir no momento seguinte. Esse fenômeno está descrito com precisão em um conto célebre de Balzac, “A obra-prima ignorada” – aliás, um dos contos preferidos de Cézanne. Frenhofer é um pintor que acaba enlouquecendo ao buscar a obra-prima, mas que consegue apenas retratar um pequeno pé feminino no meio de um amontoado de manchas. A pintura se transforma em uma muralha abstrata, não há profundidade, apenas tinta aplicada na superfície da tela.
Podemos notar aqui como tanto o artista do Cambuci como o do Bairro do Limão absorveram a singularidade da pintura moderna com muita propriedade, embora com faturas radicalmente distintas. Ambos chamam atenção pelo aspecto rústico de suas construções. Se um nos faz pensar nas paredes sutilmente caiadas, o outro nos leva para a superfície ríspida do concreto armado. Joviais, vibrantes, alegres e às vezes taciturnas, o fato é que as pinturas de Bernnô destoam pela sua singularidade. Não vemos pintura semelhante ser feita em São Paulo. Nem figurativas nem totalmente abstratas, nem datadas nem fora do tempo. Antes, resistem às intempéries e continuam a vibrar. Verdadeiro romântico, Bernnô levou a vida ao limite. Passou em ritmo alucinado por aqui e, quem sabe, continua a viajar como um cometa prestes a causar terremotos ao colidir com outros planetas. Mas o que importa de fato agora é que mediante estas pinturas podemos presenciar fragmentos de uma vida intensa.
José Bernnô
NA GALERIA ESTAÇÃO
Abertura: 19 de maio, às 19h - Até 30 de junho de 2016
Exposição prorrogada até 30 DE JULHO!
Mais do que uma exposição, a Galeria Estação faz um tributo ao artista José Bernnô (1949, São Paulo – 2009, São Paulo). Com curadoria de Marco Gianotti, amostra conta com 11 pinturas de superfícies cromáticas intensas, que registram a forte personalidade de um artista cuja formação deu-se em sua oficina mecânica, no Bairro do Limão, na capital paulista.
Ainda que Bernnô tenha frequentado a Faculdade de Belas Artes, em São Paulo, foi a sua experiência de pintor automotivo que o levou ao artista que veio a se tornar. Sua primeira exposição individual aconteceu tardiamente, em 2008, quando tinha 59 anos, com o incentivo de Paulo Pasta, Rodrigo Naves e Marco Giannotti, já estabelecidos artistas plásticos. Depois do expediente, a sua oficina transformava-se em ateliê e ele seguia produzindo suas telas madrugada afora. Bernnô soube aliar suas inquietações contemporâneas ao espírito comunitário, ao participar das atividades do seu bairro.Chegou a realizar as alegorias para a escola de samba Mocidade Alegre.
Segundo Gianotti, o pintor do Limão nos faz lembrar o pintor do Cambuci, Volpi. “O artistanunca procurou uma pintura refinada e, em seu trabalho, linha, cor e matéria bruta parecem estar um pouco fora da ordem, com cores que desempenham papel ativo noespaço pictórico, criando um simbolismo hermético, distante da representação da natureza”, destaca.
Bernnô realizava seus experimentos cromáticos em pedaços coloridos de pano ou de papel o que o levou a adotar um processo criativo muito parecido com a colagem.“Em um momento importante de sua formação ele chegou a pintar em caixas desmontadas de papelão. Nesse caso, os recortes se agrupam fortuitamente e criam uma sensação de unidade maior do que a soma das partes. “Campos cromáticos assumem um aspecto de figura quase por acaso, de modo que passamos a imaginar uma geometria que volta a se encontrar com o espaço do mundo”, lembra Gianotti. Por esse motivonão se encontra nem linhas retas nem quadrados perfeitos em sua pintura. As hastes verticais que aparecem de vez em quando lembram os postes corroídos pelo tempo e que estão prestes a cair após um temporal. “As marcas do horizonte não nos levam ao mundo sublime, são como as simples marcas feitas com esmalte em uma oficina mecânica para evitar a sujeira”, explica o curador.
Gianotti ainda aponta que suas pinturas resistem à palavra, em uma contrução rústica que, mais uma vez, nos remete a Volpi. “Se um quadro nos faz pensar nas paredes sutilmente caiadas, o outro nos leva para a superfície ríspida do concreto armado. Joviais, vibrantes, alegres e às vezes taciturnas, o fato é que as pinturas de Bernnô destoam pela singularidade. Não vemos pintura semelhante ser feita em São Paulo. Nem figurativas nem totalmente abstratas, nem datadas nem fora do tempo.”
José Norberto de Mattos (José Bernnô) – 1949-2009
Pintor, mecânico e músico, Bernnô nasceu no bairro do Limão, zona norte de São Paulo onde se formou técnico em mecânica pelo Senai e atuou também com desenhista de projetos mecânicos. Com cerca de 20 anos de idade foi trabalhar em uma concessionária de automóveis participante de corridas esportivas, especializa-se na funilaria e pintura desses veículos.
Estudou desenho arquitetônico e trabalhou como projetista. Foi neste momento que começou a produzir pinturas figurativas e montou sua primeira oficina mecânica aproximadamente em 1979, a Onix Import, que se especializou em funilaria, pintura e personalização de veículos. Ingressou na Faculdade de Belas Artes de São Paulo, onde se formou em 1987. A partir de 2001, freqüentou cursos livres com os pintores Paulo Pasta e Marco Gianotti. Em 2005, Bernnô participou do 30º Salão de Arte de Ribeirão Pretoonde recebeu o prêmio de aquisição.
Seu ateliê era na própria oficina e alguns artistas, ao requerer serviços para o conserto de seu carro, tomavam contato com as pinturas ali expostas. Desse encontro resulta sua primeira exposição individual no Estúdio Buck (2008), em São Paulo, com curadoria de Cauê Alves. No mesmo ano, o crítico Rodrigo Naves o cineasta Pedro Gorski inicia a produção do documentário Bernnô, concluído em 2010.
Serviço:
José Bernnô
Curador: Marco Gianotti
Abertura: 19 de maio, às 19h (convidados)
Período da exposição: De 20 de maio a 30 de junho de 2016, de segunda a sexta, das 11h às 19h, sábados das 11h às 15h - entrada franca.
Galeria Estação
Rua Ferreira de Araújo, 625 – Pinheiros SP
Fone: 11.3813-7253
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