Exposição José Bezerra Esculturas local: Galeria Celma Albuquerque Belo Horizonte | MG Curador: Rodrigo Naves
JOSÉ BEZERRA: NATUREZA E EXPRESSÃO
Rodrigo Naves
José Bezerra nasceu em 1952 na cidade de Buíque, interior de Pernambuco, onde o sertão confina com o agreste. Seu pai era agricultor e, aos sábados, barbeiro da região. José foi lavrador, jóquei de carreiras improvisadas, trabalhador braçal, carreiro e tantas outras atividades a que a pobreza obriga. Matou bichos para comer, derrubou árvores para fazer lenha, coisas que hoje o infelicitam e que tenta expiar pela arte.
Há uns dez anos José teve um sonho em que era chamado a realizar os trabalhos que faz hoje em dia. Deveriatornar-se artista. A partir daí ele passou a olhar as madeiras que o cercavam, o que antes não fazia, e a intervir nelas. José não esculpe de forma tradicional, atuando sobre um bloco de madeira de modo a alcançar uma forma definida. Procura ver uma figura que já se insinua no lenho – em geral, umburana, seu tronco, galhos e raízes – e trazê-la à tona com a intervenção rude de um facão, grosa, formão e serrote.
Toda a família de José Bezerra lida com madeira. A todos José censura o excesso de trabalho, o que chama de “alisar a madeira”[1], deixando-a sem asperezas e bem delineada. A razão para a contrariedade é precisa: “porque aí a madeira some”. Então, para ele, se trata de alcançar uma figura e simultaneamente manter seu vínculo com a madeira bruta de que partiu e com os instrumentos e gestos que nela agiram. Como diz o artista, “ela [a madeira] tem uma aula com a gente e a gente tem uma aulazinha com ela”[2]
Essa decisão confere a suas esculturas uma intensidade incomum. José trabalha em geral com toras retorcidas, típicas da vegetação do lugar, como é o caso da umburana. Esse aspecto irregular, unido aos poucos talhos que as conformam, produz um resultado notável. A definição oscilante das figuras se une à tortuosidade da madeira, e essa relação faz com que percebamos formas que parecem lutar para emergir, em meio ao embate entre a matéria vegetal e a intervenção escultórica rude e parcimoniosa. Vem daí a expressividade singular de suas obras, que parece não derivar do conflito entre as paixões individuais e a avareza do mundo, como é corrente, e sim de uma realidade que, cindida e conturbada, revela um conflito interno que retarda sua definição e aparecimento.
Seus bichos, corpos e rostos não têm a doçura de grande parte da chamada arte popular, feita de afeto e familiaridade com os materiais, que advém de sua proximidade com o artesanato e da necessidade de tirar o melhor proveito da madeira, da argila ou da pedra por meio de técnicas rudimentares. Ao contrário, fazer e figuração parecem estranhar-se reciprocamente, ainda que ao fim cheguem a uma unidade. Porque não podem e não querem submeter a madeira, os gestos de José Bezerra precisam transformá-la e, ao mesmo tempo, mantê-la à baila o tempo todo. Essa tensão ajuda a entender porque a estranheza de suas figuras tem uma relação orgânica com seus procedimentos artísticos, o que lhes dá uma eficácia surpreendente.
Os bichos compõem uma parte considerável das figuras esculpidas pelo artista. São animais domésticos ou bichos da região, todos familiares a José: cachorros, tatus, socós, tamanduás, bichos-preguiça. Suas escolhas se afastam dos animais imponentes ou carregados de simbolismo, como tigres, águias ou serpentes. No entanto, esses temas simples conduzem a soluções inesperadas, pois praticamente transfiguram a idéia corrente que temos deles. E foi com essa feição que José os trouxe ao mundo, tentando remediar “as maldades” que fez para trás.
O seu Socó[3], uma ave que se alimenta de peixes e vive próxima de rios, lagos e mangues, tem do pássaro quase apenas o bico, que avança ameaçadoramente sobre o observador. Sua contundência não depende só do tamanho desproporcional. A curva do tronco usado pelo escultor dá à obra uma dinâmica que torna o bico da ave a culminação de um movimento para frente e para cima, sem o que se produziria aí um efeito mais irônico, próximo ao Nariz de Giacometti. E os golpes ligeiros do facão intensificam o aspecto invasivo, ao fazer coincidir o gesto que interveio no tronco e sua configuração natural. Ao aspecto ameaçador do pássaro corresponde uma feição de pânico que se apodera dele. E os olhos vazados, se bem percebo, são a manifestação mais explícita do seu pavor, da visão de algo que o cegou. Se a simplicidade e concisão de muitas esculturas de José Bezerra têm algo de brancusiano, a crispação que as atravessa de parte a parte as afasta decisivamente do artista romeno.
O Cachorro teria, em princípio, uma configuração oposta. Esculpido num tronco mais regular e estável, quase contido nos limites da madeira, revelaria em sua própria inserção no material algo da lealdade dos cães, de sua fidelidade à vontade alheia. Contudo, o artista leva tão longe esse processo de subordinação, conduz tão completamente o animal a limites estritos que uma pressão inversa, de dentro, provoca uma revolta latente do bicho. Seu tronco foi talhado a golpes mais largos e superfícies amplas o configuram. Já a cabeça, tão mais ligada às irregularidades naturais da madeira, mostra uma rudeza oposta à vontade de controle. Essa trajetória culmina na boca do animal, ainda menos regular. O processo de domesticação leva a seu oposto e estamos a milímetros de um cachorro louco.
As deformações e a angustiante expressividade das esculturas de José Bezerra por vezes tangenciam o cômico, um aspecto que sempre ronda seus trabalhos. A figura com a perna levantada, por exemplo. Nele, o corpo tem uma representação meio esquemática, comum a muitas de suas obras: cabeça enfática, um pescoço que é também tronco, as duas pernas que se alongam desproporcionalmente, a falta dos braços e de detalhes. Aqui, no entanto, a forma dos galhos de que o artista partiu levou a uma construção dinâmica — um passo de dança, um ritual, um salto — rara em seus trabalhos. A perna esquerda, levantada e tão menor que a direita, contrabalança a verticalidade marcada que vai do fim da outra perna à cabeça. Seu movimento dá leveza à figura, livra-a da gravidade imposta pela forte ascensionalidade. (Pena que José Bezerra não tenha conseguido resolver sua disposição, o que levou ao uso de uma base exterior à escultura propriamente dita.) E seu desenho sinuoso incorpora à perna a melodia que a faz dançar matissianamente. Tudo isso reduz consideravelmente a presença bruta da matéria vegetal, afasta-a da terra e a suaviza. O bico caprichoso da figura trai o prazer que vai por ela. Mas não nos enganemos: o ser humano que se delicia com a música a ponto de mover-se irá cair... Tão menor, a perna esquerda não saberá apoiá-lo. Sua liberdade é também seu ponto fraco. Curiosamente, não me parece que a escultura faça apenas rir, assim sem mais. Alguma coisa nessa figura desengonçada desperta simpatia. Sorrir, sim, talvez. Mas ela se assemelha tanto a nossos apertos cotidianos que não saberíamos nos distanciar o suficiente para apenas rir.
Quando fala de sua arte — e José Bezerra também faz música —, o artista enfatiza o papel da imaginação no que realiza. Assim, a importância que atribui ao ato de ver imagens em troncos e galhos que acha pelos arredores de seu sítio encontra na imaginação um elemento que afasta suas peças de um realismo singelo, de quem transpõe para as nuvens do céu os devaneios que lhe vão pela cabeça. Para José Bezerra — e os exemplos analisados atrás deixam isso claro —, ver significa abrir a matéria natural, a madeira, para possibilidades que a afastem de uma identidade preguiçosa consigo mesma, bem como de um uso apenas instrumental. Rearticulá-la. A natureza que se depreende de suas obras tem uma vida intensa, uma energia inesgotável e atormentada.
A atuação sumária sobre as madeiras — que muitas vezes têm um facetamento que lembra a pincelada de Cézanne —, a lembrança constante de sua origem vegetal e a intensidade de suas figuras dão às obras a aparência de um movimento incompleto e inacabado, como se aspirassem a uma continuidade que as levasse além de seus contornos. Não se trata simplesmente de uma aspiração de volta à terra, de reatamento com uma vida que se interrompeu. José Bezerra distribui suas esculturas no terreiro que circunda sua casa, todas voltadas para o rancho em que trabalha e canta. Aquele conjunto de objetos voluntariamente fragmentados, pela diversidade das obras, produz uma inteireza que cria para o artista uma segunda natureza, transfigurada pelo seu olhar e pelas suas concepções[4].
Novamente, Brancusi vem à mente. William Tucker notou com precisão que “Brancusi evidentemente considerava seu estúdio o ambiente ideal para seu trabalho como um conjunto. A base desempenha o papel do estúdio como meio na relação com as obras individuais. Onde a escultura é polida, a base é tosca; onde a escultura é compacta e ordenada, a base é solta e livre; onde a escultura é concentrada, a base é expansiva”[5]. Sabendo que suas obras iriam se separar, Brancusi encontrou nas bases uma maneira de manter o diálogo entre elas. José Bezerra ainda não equacionou suficientemente o modo de expor suas obras. Por ora, ele as apoia sobre o solo ou as enterra.
Igualmente, porém, o conjunto que ele arma em seu terreiro potencializa a dinâmica que perpassa os trabalhos individuais. E ajuda a compreender melhor a concepção de natureza, intuitiva ou não, que o artista quer dar a ver. Dispostas em diálogo umas com as outras, as esculturas de José Bezerra lembram as descrições que Euclides da Cunha faz da região de Canudos, na primeira parte de Os sertões, “A terra”: “(...) árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...”[6]. Realmente, a visão que Euclides da Cunha formula em seu livro delineia uma natureza conturbada que parece antecipar o conflito armado de Canudos. Numa passagem reveladora, Augusto Meyer escreve: “É que ele dramatiza tudo (...). Mesmo nos grandes painéis geológicos do começo apresenta a paisagem não completa e acabada (...), mas como produto de convulsões gigantescas”[7].
No entanto, penso que a ambição de José Bezerra é, ao mesmo tempo, mais modesta e mais histórica que a de Euclides da Cunha. A expressividade angulosa de seus trabalhos — acentuada pela disposição em conjunto — não pretende criar uma cosmologia tumultuosa que faça do sertão e de sua realidade natural a matriz das realidades do mundo. O conflito que o move advém da compreensão de que o próprio meio que contribuiu decisivamente para o surgimento de seu trabalho — essa região em que o contato operoso com a natureza mantém um vínculo com a cidade que não chega a ameaçá-la — está prestes a ser posto abaixo pelas mudanças aceleradas nas relações econômicas do país. Além disso, estou convencido de que o escultor intui como poucos a extensão da tragédia que ronda todo o planeta, as ameaças que a natureza enfrenta em escala mundial.
José Bezerra vive numa área particularmente bonita de Pernambuco, o Vale do Catimbau — uma reserva ecológica —, com uma topografia que lembra um cânion de pequenas dimensões e com uma vegetação agreste mas abundante. Portanto, não é de uma realidade imediata e próxima que fala o artista. Me parece que o inquieta a percepção de um processo que poderá destruir um meio no qual vive com dificuldade e que no entanto é o seu lugar, de onde tira sua identidade e sua arte. E então, por mais que sua obra tenha uma relação intrínseca com seu meio, ela é, de algum modo, uma oposição a ele. A expressividade tocante de seus trabalhos não fala de uma natureza bucólica e de suas delícias: fala de sua destruição iminente.
Então, afinal, o que vê José Bezerra quando atenta para a vegetação que o envolve? A questão da preexistência de figuras numa matéria rude tem uma longa história na arte, de Michelangelo a Brancusi. Para Michelangelo, conduzido por um furor divino, tratava-se de livrar a matéria de seu peso e rudeza, conduzindo-a à espiritualidade da forma. Brancusi, muito menos cristão, procurava apenas tirar proveito do material de que partia, como acontece em algumas versões da Tartaruga, do Galo, da Feiticeira e do Torso de jovem, o que contribuía para a economia formal que caracteriza sua obra. Quanto a essa questão, José parece seguir um caminho próprio. Não se trata de achar uma simples analogia entre uma raiz e um animal. Seu olhar parece estar constantemente acompanhado de um sentimento apocalíptico que transporta para as obras que esculpe, o que ajuda a entender a ênfase que dá à imaginação em seu processo de trabalho.
José Bezerra pertence às camadas pobres de nossa população, trabalha com técnicas que o aproximam da arte primitiva e com temas próximos da vida rural. Todos esses aspectos conspiram para que seja encaixado no rótulo de artista popular, uma noção dúbia e limitadora, mesmo depois que a arte moderna restituiu às artes marginalizadas um estatuto que jamais tiveram. Não é esse o lugar para avançarmos nessa discussão. A meu ver, José Bezerra é simplesmente um artista brasileiro de grande força e atualidade e isso em função da pertinência das questões que o movem e da notável maneira como as torna visíveis. Confinar seu trabalho ao gueto do “popular” significaria apenas pacificá-lo e reduzi-lo. José Bezerra não sabe sequer ler. Mas há mais argúcia e clarividência em seu trabalho do que no daqueles — e são tantos — que confundem arte com erudição.
[1] Afirmação de José Bezerra em conversa realizada em 12 de dezembro de 2008, em seu sítio. As passagens entre aspas sem menção a outra fonte se referem a esse diálogo.
[2] Essa afirmação do artista aparece no documentário José Bezerra — aulazinha com a madeira, de Malu Viana Batista.
[3] José Bezerra nomeia apenas algumas de suas esculturas. Os nomes em itálico são aqueles dados por ele.
[4] A importância da disposição conjunta das esculturas de José Bezerra em seu terreiro me foi apontada pelos arquitetos Cátia Avellar e Roberto Montezuma. Cátia foi, com Vilma Eid, uma das primeiras pessoas a dar o devido valor aos trabalhos do artista.
[5] Tucker, William. The language of sculpture. London: Thames and Hudson, 1974, p. 57.
[6] Cunha, Euclides da. Os sertões. Edição, prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo M. Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial e Imprensa Oficial SP, 2002, p. 116.