Cícero Alves dos Santos | Véio
A Galeria Estação e o Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro – IIPB começam o ano de 2010 dando continuidade ao seu objetivo maior, que é o de mostrar a obra dos grandes artistas brasileiros. Desta vez temos a parceria da Galeria Karandash, de Maceió - AL, comandada por Maria Amélia Vieira e Dalton Costa, grandes entusiastas da obra de vários artistas locais e responsáveis por sua divulgação no território nacional.
Estes são artistas que, sem erudição e contando com a força da sua obra, mostram que arte é arte, sem distinção ou preconceito. Eles se têm imposto no mercado apenas pelo rigor e pela qualidade do próprio fazer artístico. Aos poucos, se torna clara a diferença entre a arte e o artesanato. O fato de os dois terem sido colocados no mesmo balaio, durante tantos anos, adiou o reconhecimento desses artistas, oriundos da nossa gente – a gente brasileira.
No ano passado, mostramos, pela primeira vez em São Paulo, numa exposição individual, o escultor pernambucano José Bezerra e a ceramista mineira Izabel Mendes da Cunha, além do já falecido e reconhecido internacionalmente José Antonio da Silva, pintor paulista. Todos receberam o aplauso da mídia e do público paulistanos.
A primeira mostra deste ano que começa é a do escultor sergipano, da cidade de Nossa Senhora da Glória, Cícero Alves dos Santos |Véio, cujo trabalho acompanho há vários anos com entusiasmo crescente. Fui conhecê-lo pessoalmente e formalizar o convite para a mostra em novembro de 2009. Acompanharam-me o curador, Paulo Monteiro, artista plástico, e a fotógrafa e também artista plástica Germana Monte-Mór. Foi um dia que acrescentou grande experiência artística e humana para todos nós. Homem sensível, sisudo, até mesmo desconfiado, Véio mostrou-nos sua arte e seu modo de viver.
Morando no sertão, numa cidade muito pequena, seu espírito de cidadão impulsionou-o a criar um “museu” com objetos e artefatos antigos, todos oriundos do fazer sertanejo e que, segundo ele, estão em desuso. São ferramentas para o arado, carros de boi, instrumentos musicais, instrumentos de barbeiro. Enfim, uma variedade de objetos que, reunidos, reconstroem a vida da região. Além dos objetos, o artista guarda a memória da cidade em documentos históricos colhidos no cartório local e fotos de figuras públicas como prefeitos, vereadores e outros cidadãos ilustres.
Véio é uma personalidade única, incomum e isso se reflete de modo direto e imediato na sua obra incomparável! Aí está a exposição. Nós a montamos com entusiasmo e alegria, esperando transmitir-lhes essas e muitas outras emoções.
Vilma Eid
Véio | esculturas Exposição de 13 de março de 2010 a 15 de maio de 2010 Curadoria Paulo Monteiro
Na boca da mata
I. Para Cícero Alves dos Santos, mais conhecido como Véio, existem dois tipos de tronco de árvore dos quais são feitas as suas esculturas: o fechado e o aberto. Os troncos abertos são aqueles em que a projeção de uma imagem se acomoda à forma natural de uma parte da árvore. Uma forquilha pode se transformar em duas pernas ou dois chifres, dependendo da figura ali projetada pelo artista. Já os troncos fechados são entalhados somente a partir de sua imaginação.
Esse procedimento que Véio adota no “tronco aberto” foi muito comum na arte da Pré-história. Na gruta de Altamira, na Espanha, vemos uma representação de animal em que apenas uma leve pintura assinala o local onde seriam os olhos da figura; o resto do corpo do bicho se completa nos relevos da parede rochosa da caverna. A utilização sistemática dos acidentes naturais é um fato permanente na arte daqueles tempos.¹
Esse jeito de fazer nos leva a pensar em uma relação que passa por uma espécie de endogamia com a natureza. Uma simbiose entre figuras do mundo animal e figuras do mundo mineral ou vegetal, em que o “fazer” acaba sendo uma questão menor do que a da projeção das imagens. Se tomarmos, por exemplo, uma pedra qualquer e forçarmos um pouco a imaginação, poderemos “ver” nela uma figura mais ou menos definida, mas raramente deixaremos de ver uma figura. Isso basicamente depende da referência de chão e de céu: onde seria o pé e onde seria a cabeça, ou onde seria o pescoço e onde seria o cabelo. Uma vez que isso se define, é difícil voltarmos a ver de novo simplesmente a pedra ou, ainda, outra figura.
Basicamente, essas projeções de figuras não obedecem a uma regra fixa. Elas acontecem de forma um tanto aleatória e acidental, e contam com uma dose considerável de subjetividade. O surgimento de uma figura em uma pedra ou tronco sugere sempre a ideia de uma aparição. Tal aparição viria de um lugar estranho, já que vemos figuras de bichos ou de gente onde a princípio não há gente nem bichos.
Supõe-se que na arte pré-histórica isso fosse cercado de um caráter mágico-religioso ainda desconhecido. Em muitos povos se verificou a veneração a acidentes naturais, morros ou montanhas, sobre os quais foram projetadas figuras e estórias, sem que houvesse neles a menor interferência humana. Para se ter uma ideia da relação entre projeção e misticismo nos dias de hoje, basta citar como exemplo uma fotografia difundida há pouco tempo em que se vê o rosto de Jesus Cristo em uma vista aérea de uma cadeia de montanhas. Provavelmente, se a mesma imagem de Jesus tivesse sido feita por alguém, perderia sua credibilidade mística. A natureza não foi feita pelos homens, então quem fez as imagens que vemos nela?
Todos esses aspectos estão presentes na arte de Véio, principalmente quando ele trabalha a partir do que chama de “tronco aberto”.² A relação de seu trabalho com a natureza é tão próxima que o artista comprou e tombou um trecho de mata nativa perto de sua casa.
II. Porém há uma diferença básica que faz a arte de Veio diversa da arte pré-histórica: o seu ponto de partida. A origem do trabalho de Véio é a historia do povo sertanejo, toda atravessada por misticismo, lendas e lutas sempre relacionadas à natureza. A relação de Véio com essa história se concretizou em um museu, o “Museu do Sertão”, que ele construiu ao lado de seu ateliê, localizado no interior sergipano. Para esse lugar, o artista levou uma enorme quantidade de objetos: roupas, chapéus de couro, utensílios domésticos e maquinas rústicas —como, por exemplo, uma furadeira feita de couro, ferro e madeira, usada pelos sertanejos nos antigos tempos.
O apelido de “Véio” foi dado a Cícero porque desde a infância ele gostava de ficar escutando a conversa das pessoas velhas de sua cidade. Muitos dos objetos recolhidos no museu que ele criou pertenceram a esses cidadãos. São objetos que testemunham o embate do homem do campo com a natureza, as soluções inventadas por ele ou trazidas de culturas mais antigas, como a indígena e a portuguesa.
Lá também se encontra a reprodução em tamanho pequeno da cidadezinha de Nossa Senhora da Glória, onde Véio nasceu, tal como era tempos atrás, quando ainda se chamava Boca da Mata. Véio conhece tudo acerca dessa pequena cidade, desde as transformações pelas quais passou até os detalhes da vida de muitas pessoas que ali moraram. Em outro cômodo do museu há uma caveira de madeira cheia de cupins sobre o chão de terra batida. Acima dela, uma coleção de ídolos de várias origens com terços pendurados, e outros objetos que serviram a crenças mágicas.
O “Museu do Sertão” de Véio é um depósito poético, uma coleção de sentidos para sua obra, onde brinquedos, instrumentos, peles de animais e ferramentas convivem com caveiras de bois, móveis antigos e santos de gesso. Onde, enfim, podemos encontrar os modos e os motivos que o levaram a se tornar artista. O próprio Veio costuma dizer que se tornou artista para contar a história de seu povo.
III. A primeira experiência escultórica de Véio se deu ainda criança, modelando a cera negra de uma abelha da região. São suas únicas peças modeladas. As atuais são todas talhadas em madeira.
Em uma pequena peça um homem se encontra diante de três porcos. Aparentemente não há nenhuma novidade nisso, a relação entre os porcos e o homem é mesmo antiga. Mas algo parece estar fora de lugar. Os três porcos encaram o homem, ele permanece estático. Os bichos talvez queiram comer. O homem não tem nada nas mãos. A cena é simples e ao mesmo tempo estranha. Um acontecimento inusitado parece estar prestes a se consolidar. Talvez um assalto ao ser humano? Ou então a morte de um porco?
Em outra pequena escultura uma mulher carrega sobre sua cabeça a cabeça de um porco, que fica parecendo a cabeça do corpo da mulher. Véio explica que isso era um hábito antigo: as mulheres iam à feira comprar a cabeça do porco e a traziam para casa equilibrando-a sobre suas cabeças. “Hoje elas têm vergonha de fazer assim....”
Seres com línguas compridas, pessoas em cima de sapos, mulheres e homens montados em carros zoomórficos e bichos estranhos. Para cada peça Véio conta uma estória. Mesmo assim, é difícil sabermos a origem precisa dessas imagens. Essa talvez seja a característica mais importante da obra de Véio. O que gera as suas esculturas quase não aparece.
Surgem cores variadas. Por exemplo: na série de palhaços, profissão que o artista confessa que gostaria de ter seguido, as cores ocupam um papel central na constituição de cada peça. Elas atuam como se fossem maquiagem e ao mesmo tempo como pintura. Esse método é utilizado também em outras peças. O que era uma pintura de palhaço vai parar em uma carranca e o que era uma forma natural, como, por exemplo, a forma de um cupinzeiro, vai aparecer em esculturas pequeninas do tamanho de um relógio.
Muitas das formas das árvores às vezes são adotadas em esculturas de tamanhos variados, como as que o artista fez em palitos de fósforo, ou naquelas em que ele aproveita quase o tronco inteiro de uma árvore. Isso tudo torna a visão de seus trabalhos surpreendente, pois os elementos que ele utiliza trocam a todo momento de lugar.
Troncos abertos ou fechados não dividem o trabalho de Véio em duas partes. O conjunto de suas esculturas nos leva ao contato com as lendas, os costumes e os aspectos mágicos da relação histórica de um povo com a natureza. Talvez isso ocorra porque o universo de Véio é incompleto e, assim como a história e o mundo natural, está sempre em mudança. A todo o momento surgem novos temas e novas formas; abstratas, figurativas, grandes, médias, pequenas ou minúsculas.
No quintal da casa onde o artista mora, uma porção de peças no chão são comidas por cupins, tudo o que vem da natureza volta para ela. “Aqui morre peça e nasce peça”, diz o artista. No trabalho de Véio surgem imagens que também podem desaparecer.
Véio esta mais ligado a Boca da Mata ou a Nossa Senhora da Glória? Os dois nomes de sua cidade natal talvez sejam a chave para a compreensão de seu trabalho: o aspecto mágico do nome Boca da Mata e o aspecto místico histórico do nome Nossa Senhora da Glória.
Véio é um daqueles artistas que merecem um lugar de destaque na cultura brasileira, não só pela vontade de contar a história do homem do sertão de um jeito próprio, nem só pela reflexão que faz sobre nossa relação com a natureza, mas muito mais do que tudo isso: pela rara força expressiva que atinge seu trabalho.
¹ l’Art de La Prehistoire, Louis René Nougier, Le livre de poche, Paris,1993.
² Alem de Véio, esse método de trabalho foi adotado por artistas como José Bezerra em Pernambuco e Fernando da Ilha do Ferro em Alagoas, entre outros.
Paulo Monteiro
Esta exposição organizada pelo Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro e realizada na Galeria Estação retrata e valoriza a cultura e as tradições do semi-árido sertanejo sob a ótica singular de Cícero Alves dos Santos, (Nossa Senhora da Glória – SE, 1948). Véio, como é mais conhecido, virá a São Paulo para fazer uma visita guiada com o público na abertura do evento, dia 11 de março. Com curadoria do artista plástico Paulo Monteiro, a mostra apresenta cerca de 100 obras que recriam, de forma onírica e crítica, o dia a dia do sertanejo.
Quando o escultor sergipano olha um tronco de madeira “aberta”, ele já reconhece a imagem que ali se insinua – a imagem se molda à forma natural do tronco –, percepção rara conferida só aos grandes artistas de raiz, entre os quais se destacam ainda José Bezerra e Fernando da Ilha do Ferro.
Véio, contudo, também trabalha com troncos “fechados”, que são inteiramente talhados para ganharem representação. As histórias do povo sertanejo, com seus misticismos, lendas e lutas relacionadas à natureza, são o tema de suas esculturas, que poderão ser conferidas nesta primeira individual do artista na capital paulista.
Segundo o curador, troncos abertos ou fechados não dividem o trabalho de Veio, e o conjunto de suas esculturas nos leva ao contato com as lendas, os costumes e os aspectos mágicos da relação histórica de um povo com a natureza. “Talvez isso ocorra porque o universo de Véio é incompleto e, assim como a história e o mundo natural, está sempre em mudança – a todo o momento surgem novos temas e novas formas; abstratas, figurativas, grandes, médias, pequenas ou minúsculas”, explica Monteiro.
Assim como muitos de seus conterrâneos, o escultor recebeu seu nome em homenagem a Padre Cícero. Já o apelido surgiu porque ele gostava muito de escutar as conversas das pessoas mais velhas. Autodidata, Véio admirava a cultura popular desde criança, quando começou a executar suas primeiras peças em cera de abelha. A relação intensa com seu meio fez o artista criar, ao lado de seu ateliê, localizado no interior sergipano, um “Museu do Sertão”. Muitos dos objetos recolhidos no museu testemunham o embate do homem do campo com a natureza. São chapéus de couro, utensílios domésticos, maquinas rústicas, roupas e acessórios que fazem parte da vida do sertanejo.
Segundo Paulo Monteiro, o “Museu do Sertão” é um depósito poético, uma coleção de sentidos para sua obra, onde brinquedos, instrumentos, peles de animais e ferramentas convivem com caveiras de bois, móveis antigos e santos de gesso. “Onde, enfim, podemos encontrar os modos e os motivos que o levaram a se tornar artista. O próprio Véio costuma dizer que se tornou artista para contar a história de seu povo”, completa o curador.
Exposição: Véio - Esculturas
11 de março: das 19h às 20h, visita guiada com o artista; às 20h, abertura da exposição
13 de abril: às 20h, conversa com Paulo Monteiro e Thiago Mesquita
Exposição até 15 de maio de 2010, de segunda a sexta, das 11h às 19h, sábados das 11h às 15h – entrada franca.
Galeria Estação
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