encerrado
07.12.2009 a 10.03.2010
R. Ferreira de Araújo, 625 - Pinheiros, São Paulo - SP, 05428-001 | São Paulo - Brazil

INTRODUÇÃO

Conheci Dona Izabel na minha ida ao Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, em 2008.O Jequitinhonha era uma falha no meu currículo, como eu sempre dizia aos amigos, que me respondiam que por lá não havia mais nada a ser garimpado.Mas não era o garimpo que me atraía. Era conhecer aquelas terras, saber do povo, tentar entender a riqueza criativa do Ulisses, da Noemisa, da dona Izabel. Quando cheguei em Santana do Araçuaí, na casa da dona Izabel, já era noite. Ela me esperava com o olhar brejeiro, vestido de estampa, brinco, colar, pulseira e os cabelos em coque, com um sorriso hospitaleiro.Imediatamente identifiquei nela suas bonecas.Que luz, que brilho, que olhar doce e firme daquela mulher com tantas histórias e experiências para compartilhar! Meu envolvimento foi imediato. Minha admiração crescia e me senti seduzida!Sentamos  na sala de jantar e, em volta da mesa comendo biscoitos de polvilho fresquinhos, feitos por sua filha Maria,  ela contou que nunca tinha tido uma exposição individual. Contou de passagem, sem ênfase ou mágoa mas, quando perguntei se ela gostaria de ter, a resposta foi imediata: sim!


Vilma Eid

MAIS INFORMAÇÕES

Izabel Mendes da Cunha | Cerâmicas Exposição de 07 de dezembro de 2009 a 10 de março de 2010 Curadoria Lélia coelho

curador

Mestra Izabel: do Jequitinhonha, do mundo Mora e esculpe o barro, em Santana do Araçuaí, a mestra Izabel Mendes da Cunha, hoje com 85 anos, nascida no município de Itinga, vale do Jequitinhonha, na fazenda Córrego Novo. Eu a conheci em 1975, realizando uma pesquisa de campo para o Iphan. Já nessa época, ela havia iniciado seu figurado, que consistia em bois, cavaleiros, passarinhos pousados em galhos, pequenos presépios, que recebiam engobo de barro branco. Fazia também louça mais moderna se comparada ao repertório cerâmico da região, centrado em panelas, potes, bulhões. Izabel produziu jogos para feijoada, cinzeiros, aparelhos de jantar. Seu marido era vaqueiro, e seu pai, João Mendes da Cunha, lavrador. Viúva, mudou-se com os filhos para Santana. Como vemos acontecer em outros pontos do país – de que o exemplo mais famoso é o do mestre Vitalino no Alto do Moura, Pernambuco –, os homens começam a interessar-se por uma arte que até pouco tempo atrás era de domínio feminino, e passam a exercê-la, uma vez que pode aumentar o orçamento familiar. Na família de Izabel – mestra que forma artistas em sua família nuclear e mesmo na comunidade de Santana – há o exemplo do seu genro, João Pereira de Andrade, nascido em 1952. Casado com Glória, filha de Izabel, João apresenta um novo repertório, de mulheres mais sensuais, parcialmente desnudas, além de moças na janela, meninos pobres, mães grávidas. O filho de Izabel, Amadeu Mendes, é um bom animalista. As filhas de Izabel, Glória e Madalena, dominam a técnica da construção da figura , e a neta Andréia Pereira de Andrade, nascida em 1981, está se formando em Belas Artes em Belo Horizonte. Andréia custeia seus estudos, em boa parte, com a sua arte do barro, feita na própria BH. Denota personalidade nas personagens que tira do barro, e pinta em requintados tons baixos de cinza, branco, negro, terras. Já queima suas esculturas em forno elétrico. Da “escola” de Izabel há que citar ainda Placedina Fernandes Nascimento, falecida cedo, que conferia forma extraordinária aos olhos rasgados e às fisionomias às vezes angulosas e prognatas de suas mães amamentando. Outra escultora importante em Santana é Delmira Ferreira de Oliveira, com suas cabeças votivas e sereias. O vale do Jequitinhonha, com os seus 52 municípios, tinha na década de 1970 três quartos da população na área rural, a maior parte subempregada na agricultura ou na mineração. Os problemas endêmicos do vale, somados à escassez de água, eram de conhecimento geral. Na década de 1990 intensifica-se a migração dessa população rarefeita, dispersa pela vasta área do vale, para a cidade de Belo Horizonte, e para trabalhos de bóia-fria em São Paulo e outros centros urbanos. No entanto, um incrível poder de resistência produz ali, entre outras formas de continuar existindo, um elenco de criações visuais, musicais e verbais das mais fortes do país. Diante da adversidade material do cotidiano, uma riqueza cultural sobrevive e mesmo se expande. A partir da década de 1970, um dos raros programas com acerto visando apoiar a população regional é desenvolvido pela Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha – a Codevale – estimula a produção da cerâmica adquirindo-a localmente em espécie para vendê-la em sua sede em Belo Horizonte. Nessa década e na seguinte, a chegada da eletricidade ao vale tem enorme impacto. Rádio, televisão, ao invés de homogeneizarem comportamentos e a produção artística suscitam nestes uma mudança fascinante. Em centros tradicionais de cerâmica, como Campo Alegre (Turmalina), ou mesmo mais recentes, como Coqueiro do Campo (Minas Novas), desenvolve-se um novo e instigante figurado, sem o abandono da produção de louça utilitária, na medida em que esta possa ser mais barata do que os produtos industrializados. O mesmo acontece nos municípios de Itinga e de Ponto dos Volantes, bem como no de Caraí. Em Caraí, além do mestre Ulisses Pereira Chaves, já falecido, a cuja arte a filha Margarida, sua mulher Maria José e a irmã Ana deram continuidade com características pessoais, atua Noemiza Batista dos Santos, extraordinária cronista em barro da vida cotidiana, acompanhada das irmãs Santa e Geralda, que dominam com a experiência que lhes vem da mãe, avó e bisavó o ofício de ceramista. Em Araçuaí, Maria Lira Marques registrou na cerâmica e no desenho com pigmentos das terras da região, com veemência, a situação dos excluídos e a força imaginativa e inquietante dos seus “bichos do sertão”. A arte da mestra Izabel, esta extraordinária retratista da população feminina do vale – os homens são raros em sua produção, mostrados geralmente como noivos no dia do casamento, logo também associados à figura central da noiva – vem há quatro décadas retirando do barro uma inesgotável galeria das mulheres do Jequitinhonha. Caboclas, brancas, negras, mulatas, pobres ou ricas – “todo mundo é filho de Deus” –, disse-me ela nos anos 1990 –, as esculturas não visam retratar pessoas específicas, mas povoam a memória da artista, de onde emergem no momento da criação. Arte que reflete o feminino, no roliço dos corpos, na sensualidade discreta mas presente nas bocas carnudas e vermelhas, nos adereços móveis agregados à escultura – como brincos, grinaldas, chapeuzinhos redondos como coroinhas, buquês de flores , pássaros –, bem como naqueles apostos aos vestidos de festa, como o das noivas. Arte que revela a mulher revestida a um tempo de dignidade, sedução e hieratismo, com um olhar que em geral não nos mira de frente: é reflexivo e ensimesmado em uma contemplação interior. Arte que fixa dois importantes rituais de passagem: casamento e nascimento. Neste último, um bebê esculpido à parte é carregado nos braços da mãe, que o amamenta. Mulheres em momentos solenes de festa ou de saídas profanas, com penteados elaborados em ondulantes e afofados cachos, de cabelos lisos caindo impecáveis sobre os ombros, em franja ou em rolos, sempre a emoldurar-lhes o rosto. Mulheres que trabalham, de pano na cabeça e vestindo uma simples saia e blusa, em geral decoradas com engobo de pequenos motivos abstratos, à maneira de tecido estampado. Reparemos na mulata de cabelo carapinha, sua cor de pele entonando com a roupa de barro ocre. Tem os braços colados ao corpo, vestidos, e não nus, prolongados por longas mãos. Ela olha, grave, para o lado, com rara, levíssima , quase invisível, contristação. Longo brinco único, aposto à escultura, pende da sua orelha, que com os lábios carnudos dão o tom da sua feminilidade. O tratamento cromático e gráfico das vestimentas, em geral sóbrio – pois toda a inflexão destas esculturas visa conduzir o nosso olhar para os verdadeiros retratos que constituem as cabeças – pode ainda apresentar soluções ousadas de modernidade no trânsito pela figura. Como os cortes em faixa de engobo branco numa diagonal que se fecha em ângulo reto na cintura, indo do ombro à barra do vestido. A frequente ausência de braços nas esculturas é outro elemento que induz à incrível síntese que a artista cria para tornar suas cabeças-retratos o fulcro do seu trabalho. Mesmo nas noivas, com sua indumentária necessariamente crivada de ornatos, o uníssono do engobo branco que recobre toda a peça, à exceção da face, continua a fazer desta o centro da atenção do olhar. Mas esta mostra ainda é, entre outros pontos altos, um resgate por Izabel da tricentenária atividade da mulher ceramista na região, agora impregnada de imaginação criadora autoral. Como já indicamos, é extraordinário o partido que ela utiliza para dar destaque às cabeças em sua escultura. Antigos vestígios da função da ancestral moringa ou botija regional apoiada em três bolas, cuja tampa a própria mãe de Izabel, a paneleira Vitalina Maria de Jesus, chegou a esculpir, pioneira, como cabeça, testemunham da longeva arte da cerâmica na região. Os braços das antigas moringas ou botijas, que antes serviam de pegas ou alças, afinam-se ou desaparecem, como se vê em Izabel, já que não se destinam mais a conter água, e sim a ornamentar espaços nas casas da elite urbana e figurar em museus e espaços universitários. Ao perder a funcionalidade, essas obras adaptam-se agora à nossa categoria de “escultura”, ao mesmo tempo em que ganham, como outras no mesmo caso, a nova denominação regional de “enfeite”. Hoje, declarou-nos Izabel neste mês de novembro de 2009, tanto ela faz a cabeça “separada” como “emendada”, dependendo da encomenda. “Porque”, diz ela, “é melhor queimar no forno a figura sem cabeça”, tanto para evitar perdas nesse processo como para o seu acondicionamento para transporte. A escultura também pode ser dividida em duas a partir da cintura separada do resto do corpo, a outra metade queimada com a cabeça já incorporada ao tronco. “Como se da cintura para baixo a gente imaginasse um filtro de água”, acrescenta Izabel. Vemos assim que do repertório “utilitário” preexistente na região, a artista retira elementos da vida diária, como faria um artista da cultura “alta”, para criar suas figuras. Encontramo-nos, portanto, diante de uma escultora que viveu para receber prêmios internacionais da Unesco (2004), a Ordem de Mérito Cultural do governo brasileiro (2004) e cuja obra figura em livros e ensaios de estudiosos de arte e cultura brasileiras, como, entre outros, os de Angela Mascelani, PHD em Antropologia Social pela UFRJ, Lalada Dalgliesh, PHD no Instituto de Artes da Unesp, Marina de Mello e Souza, socióloga, historiadora, hoje responsável pelo ensino e difusão da história da África na USP. Mello e Souza observa que Izabel partilha seu conhecimento, “com o prazer próprio dos genuínos mestres”, com todos que a procuram, e assim “criou ao redor de si uma escola de ceramistas que envolve todos os membros da sua família residentes em Santana e muitas outras pessoas do lugar” (Instituto Nacional do Folclore, SAP 1995). A presença fortíssima desta mestra responde pela floração de uma verdadeira escola em torno dela, que não só possibilita a afirmação e o crescimento do indivíduo através da criação, como concorre para a aparição de um pequeno orçamento familiar, através da comercialização de seu figurado. Comercialização que, sublinhamos, não pode jamais tornar-se objeto de uma linha de montagem calcada na multiplicação acelerada do fazer, “otimizada” por economistas, mas sim dignificar, pela elevação do preço e pela exposição no circuito das artes, das universidades e das escolas, as criações destes artistas que começaram a surgir entre nós, tanto em meio rural como urbano, nos inícios do século XX e continuam a manifestar-se pelo XXI. Ao abordar a categoria do tempo – tempo de imaginar, de fazer, de fazer imaginando e vice-versa, calam em nós estas palavras de Nelson Brissac Peixoto em Paisagens urbanas (1996): “A luta contra a insubstancialidade do mundo contemporâneo, a falta de consistência das coisas e dos personagens, diz respeito à necessidade de resgatar a integridade das imagens. Não apenas na sua unidade, mas também pela capacidade de serem verdadeiras. Imagens que nos digam a verdade. Imagens que – tarefa que Deleuze atribui ao cinema – nos restituam, depois desses processos midiáticos desagregadores, um pouco de real e de mundo. Imagens que tenham tempo. (...) Em vez de acelerar cada vez mais, diferenciar: conservar várias temporalidades ao mesmo tempo, simultaneidade de passado e de presente, presente e futuro”. Artes híbridas, temporalidade e intemporalidade, tradição e mudança As imagens de Izabel, de Ulisses de Caraí, de Vitalino, de GTO, de José Antonio da Silva, de José Bezerra, são, como diz Lyotard da pintura de Barnett Newman, o próprio tempo. Tempo histórico e tempo intangível. O aparecimento de Vitalino (Vitalino Pereira dos Santos, 1909-1963), por exemplo, tem algo em comum com os de Izabel, Geraldo Telles de Oliveira, o GTO (1913-1990), Dezinho de Valença (José Alves de Oliveira, 1916) e muitos inventores que suscitaram em torno de si verdadeiras “escolas” de discípulos talentosos, começando pelos membros de suas famílias. Falar de arte do povo, nos séculos XX e XXI, é, antes de mais nada, reconhecer a profunda mudança social neles ocorrida. Adensa-se aí, como define Gilberto Velho em Projeto e metamorfose (1994), “um campo de possibilidades” que é bastante típico da sociedade moderno-contemporânea, e “aparece fortemente solidário com o desenvolvimento de ideologias individualistas”. Assim, deduz-se que, partindo do chão coletivo da comunidade rural ou das periferias das grandes cidades, à medida que se impregnam de um ethos urbano – seja por migração, seja pela difusão de novos conteúdos midiáticos –, surgem indivíduos que, na área da visualidade, da palavra, da música, geram obras de feição original, autoral, única. O indivíduo-sujeito recorre à memória, que incorpora às mudanças, reúne vários tempos para a construção da sua biografia, a fim de criar o seu projeto artístico, incorporando aí também a dimensão do futuro. A fluidez das fronteiras entre níveis de cultura entre nós, segundo Velho, “é uma das características mais definidoras da sociedade brasileira. (...) Você vê isso tanto na criação artística popular quanto na criação das camadas médias ou de elite, e no trânsito entre elas”. Aqui hoje emergimos com grande vigor daquele monólito de atemporalidade e anonimato depositado sobre esta circularidade entre as esferas do popular e do culto, como bem observaram Peter Burke e Carlo Guinzburg (1980), ao analisarem pioneiramente a repressão da cultura popular na idade moderna – 1500 a 1800. Somos realmente um país privilegiado pelas nossas origens diferenciadas, enriquecidas pela mestiçagem e pelo hibridismo transculturado que daí resultou, possibilitando uma contínua realimentação na área do comportamento e da invenção. A ocorrência do movimento modernista no Brasil muito contribuiu para dar maior visibilidade a este quadro. Um dos seus principais criadores, Mário de Andrade, mostra claramente na sua obra-prima, o romance Macunaíma, exemplo vivo da impregnação recíproca entre o conhecimento erudito e os saberes e artes populares e tribais das mais variadas origens. Polígrafo – poeta, ficcionista, ensaísta, folclorista, musicólogo –, também ele buscou e criou “um terceiro termo”, como dizia – e diremos agora transculturado –, para a absorção, o fusionamento e o contínuo movimento de vaivém, de “subida” e “descida” de elementos entre a cultura alta e a do povo comum. Foi, portanto, o movimento modernista, inserido nas grandes transformações ocorridas no Brasil na primeira metade do século XX, e delas também agente, que interveio de maneira decisiva quer na renovação das linguagens artísticas, quer na recuperação daquelas do passado, como, por exemplo, o barroco. Com a “rotinização” do modernismo apontada por Antonio Candido nas décadas de 1930 e 1940, em certa medida vai-se tornando menos problemático e mesmo mais programático para a inteligência brasileira identificar e assimilar formas de criações diferentes, tão enfatizadas mais tarde pelos estudos da história das mentalidades. Será a partir dos anos 1930, no Rio de Janeiro e em São Paulo, bem como em Pernambuco, que alguns artistas de fonte popular encarnarão para a nova consciência dos intelectuais, que se refletia na imprensa, momentos de encontro ou de “descoberta”. José Antonio da Silva (1909-1996), Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963), Chico da Silva (Francisco Domingos da Silva, 1910-1985) serão alguns dos primeiros nomes reconhecidos pela inteligência modernista, que os fazem chegar às páginas dos jornais e a exposições em museus. No entanto, os próprios artistas do povo comum não foram absolutamente agentes passivos no processo de reconhecimento do quadro amplo da vida nacional. Pois também por seu lado experimentavam mudanças no seu meio sociocultural, fazendo uma síntese formal própria, como qualquer outro artista da tradição ocidental letrada, das transformações que viam acontecer diante dos seus olhos e os motivavam. No caso do mestre Vitalino, por exemplo, da relativa uniformidade do figurado de barro feito antes na região para brinquedo de criança – daí o termo “bonecos” – ele parte para “a inventação de motivo de boneco”, expressamente declarada e documentada pelos seus companheiros ceramistas na mesma localidade, o Alto do Moura, Caruaru, Pernambuco. Cria-se em torno de Vitalino uma verdadeira escola de ceramistas, quando ele se transfere da roça para a cidade. O público que compra o seu trabalho é quase exclusivamente de fora, dos grandes centros urbanos. Vitalino desenvolve então o que denominaríamos “estilo”, em que seu “expressionismo” se traduz por vocabulário formal próprio, exatamente como acontece com a mestra Circularidade e transformação Por outro lado, artistas da norma culta representavam a vida cotidiana das camadas de baixa renda, no campo e nas cidades. Alberto da Veiga Guignard, Tomás Santa Rosa, José Pancetti retratavam, na década de 1940, empregadas domésticas, favelas, negros, fuzileiros, trabalhadores urbanos e rurais. Roberto Burle Marx à mesma época pintava retratos de igual qualidade do povo comum, favelas, objetos de arte popular, a flora brasileira. Já iniciava então o seu paisagismo, com flora pesquisada in loco, em contínuo intercâmbio com botânicos, tornando-se ele mesmo um deles, e descolonizando o jardim brasileiro da prototipia europeia. Torna-se, ao longo de décadas, o nosso mais eminente artista, com reconhecimento internacional, e jardins públicos de colossal extensão – para todos, como ele dizia – na América Latina, além de trabalhos em vários outros continentes. À qualidade eye intense do seu jardim, que engolfa em primeira instância o olhar, sucede a percepção de um profundo e universal substrato cultural e conhecimento da arte universal, como apontaram S. Giedeon, Bruno Zevi , Lucio Costa, Bardi, William Howard Adams e muitos outros críticos em ensaios e livros que sobre ele escreveram. Pois Burle Marx, cujo centenário agora celebramos, bem como o do mestre Vitalino, durante toda a vida conviveu com as artes do povo. Trouxe para o seu sítio de Santo Antonio da Bica obras de mestres do vale do Jequitinhonha, ex-votos, carrancas. Encontra-se ali hoje talvez a maior coleção do mestre Ulisses Pereira Chaves (Caraí, Jequitinhonha, 1924-2007). Este mestre foi especialmente focalizado por Eduardo Subirats no ensaio “Arte popular y cultura digital”, em Una última visión del paraíso (2004). Burle Marx agenciou na entrada da sua casa, antiga sede de fazenda de café no sítio de Guaratiba, RJ, uma sala especial para a coleção de arte popular, e pintou-lhe o teto em caixotões, para colocar-se em intimidade e paridade com ela. Um de seus últimos e comoventes depoimentos de octogenário lúcido foi o de que tinha a esperança de ter absorvido em sua obra a fonte popular brasileira. Nas décadas 1930 e 1940 Tarsila do Amaral abordava a paisagem brasileira, a religiosidade popular, e mais tarde o operariado paulistano. À escala cromática de uma de suas fases, em que predominavam azuis e rosas, chamava de caipiras. O escultor Victor Brecheret realiza obra em que se destaca uma fase na qual elementos de arte indígena são magistralmente absorvidos. O pintor Vicente do Rego Monteiro transfunde em larga medida do seu trabalho inicial elementos indígenas marajoaras, que depois prolonga em analogias com outros repertórios tribais. Chegado ao Brasil de longa permanência na Europa em 1929, com uma sólida formação artística e havendo incorporado lá mesmo a experiência das vanguardas, Guignard desenvolve uma pintura autônoma dos movimentos nacionalistas, embora se alinhe com os modernistas, e transforma-se em um dos mais altos intérpretes do povo e da paisagem do nosso país. Portinari, na sua fase brodosquiana, faz festas na praça, rodas infantis, jogos de futebol, para, nos anos 1940, voltar-se para a pintura monumental, representando o povo no trabalho e em momentos de extrema exclusão, como os dos retirantes das secas do Nordeste. Lembraremos ainda o grupo Santa Helena, em São Paulo, ao qual pertenceram Alfredo Volpi, Aldo Bonadei e Francisco Rebolo, imigrante e filhos de imigrantes, que pintaram ao ar livre paisagens e cenas proletárias. Com perfil semelhante, o Núcleo Bernardelli, durante a década de 1930 até 1942, teve o pintor Quirino Campofiorito como presidente e nucleados como José Pancetti, Milton Dacosta e Eugenio Sigaud. Poderíamos continuar aqui quase infinitamente no rastro desta circularidade entre as criações das diversas culturas brasileiras. Que transitam de Rubem Valentim a Alcides Pereira, de Hélio Oiticica à escola de samba da Mangueira, de Antonio Poteiro a Celeida Tostes, de Waldomiro de Deus a Volpi, de Samico a José Costa Leite e J.Borges, de pinturas recentes de Rubem Grilo a Galdino, ou das instalações de Efrain Almeida , que já integra a trabalho feito no Cariri xilogravadores locais, a quem o artista pediu que fizessem os seus autorretratos. Essas peças individuais foram reunidas numa única xilogravura, que está em 2009 exposta em galeria do Rio de Janeiro. Vik Muniz teve procedimento semelhante com os catadores de lixo no Rio, embora com outros tratamentos. Fizemos aqui um esforço breve e incompleto diante do gigantesco universo social e cultural do nosso país, para traçar o perfil de artistas como o da mestra Izabel Mendes da Cunha, que integra uma já extensa e crescente representação de criadores do seu porte. Eles são nossos contemporâneos e filhos da modernidade dos séculos XX e XXI. Além disso, importa aqui registrar o alargamento da nossa consciência com relação ao lugar que ocupam e ao significado do seu trabalho, a dignidade com que são tratados numa exposição como esta e em catálogos e livros realizados com apuro, bem como a possibilidade de viverem da sua arte em termos profissionais. Surgindo de gerações de artesãs ancestrais, mestra Izabel, no entanto, ganha dimensão autoral e se aprofunda naquele tempo lembrado por Brissac Peixoto: onde “as dimensões, cores, traços materiais, são um acontecimento em si. Pura presença, como a aparição de um anjo”. Na realidade, através dos variados retratos da mulher do Vale, ela fixa toda uma população feminina, de secular presença na terra onde nasceu, e que resgata com toda a percepção da sua dignidade, da sua reserva, da sua beleza, da sua sedução, do seu mistério. Como os dos torsos com cabeça do escultor japonês Katsura Funakoshi – que esculpe em cânfora policromada e mármore –, os retratos que Izabel cria em cerâmica, pela altura da sua arte e meios próprios com que a desenvolveu, com os recursos da sua cultura e poder imaginante, contribuem para uma forte expressão da representação universal da humanidade.


 


Lélia Coelho Frota Escritora e historiadora de arte Membro da ABCA/AICA

RELEASE

As famosas bonecas do Jequitinhonha já fazem parte do inconsciente coletivo do povo brasileiro e, há muito, ultrapassaram o território nacional para conquistar prestígio internacional. Esta primeira exposição individual de Dona Izabel em galeria, Izabel: Do Jequitinhonha, do Mundo, é, contudo, uma rara oportunidade para o público apreciar um conjunto representativo de sua obra, além de poder compartilhar seu processo de produção no workshop que será realizado no dia seguinte à abertura da mostra. As 18 peças selecionadas do acervo da Galeria Estação fornecem um panorama da arte em cerâmica que surge das mãos desta extraordinária retratista da população feminina. Ao adaptar moringas de barro a corpos de mulheres, Dona Izabel acabou por construir uma produção extremamente vigorosa, como poucas, capaz de expandir a geografia de sua terra, o Vale do Jequitinhonha. Caboclas, brancas, negras, mulatas, pobres ou ricas, “todas filhas de Deus”, conforme costuma afirmar Dona Izabel, são personagens do seu imaginário. “Arte que reflete o feminino, no roliço dos corpos, na sensualidade discreta, mas presente nas bocas carnudas e vermelhas, nos adereços móveis agregados à escultura – brincos, grinaldas, chapeuzinhos redondos como coroinhas, buquês de flores, pássaros –, bem como naqueles apostos aos vestidos de festa, como o das noivas”, comenta Lélia Coelho Frota, no texto do catálogo da exposição. Segundo a crítica de arte que há mais de 30 anos dedica-se ao estudo da criação de fonte popular, Dona Izabel retrata as mulheres em momentos solenes de festa ou de saídas profanas, com rostos moldurados por penteados elaborados, crespos, cacheados, lisos com franjas, entre outros estilos. “O tratamento cromático e gráfico das vestimentas, em geral sóbrio - pois toda a inflexão destas esculturas visa conduzir o nosso olhar para os verdadeiros retratos que constituem as cabeças - pode ainda apresentar soluções ousadas de modernidade no trânsito pela figura”, completa Lélia Coelho Frota. Izabel Mendes da Cunha, hoje com 85 anos, nasceu no município de Itinga, Vale do Jequitinhonha, na fazenda Córrego Novo. A artista criou ao redor de si uma escola de ceramistas que envolve todos os membros da sua família e muitas outras pessoas. Escultora premiada - Unesco ( 2004), a Ordem de Mérito Cultural do governo brasileiro (2004) -, sua obra figura em livros e ensaios de estudiosos de arte e cultura brasileiras, como, entre outros, os de Angela Mascelani, PhD em Antropologia Social pela UFRJ, Lalada Dalgliesh, PhD no Instituto de Artes da UNESP, Marina de Mello e Sousa , socióloga, historiadora, hoje responsável pelo ensino e difusão da história da África na USP.


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