Com a aproximação da Bienal de São Paulo 2023, a equipe da Galeria Estação, liderada por Giselli Gumiero e Rodrigo Casagrande, me trouxe esta ideia, que adorei!
No circuito das artes desde 1986, sempre apaixonada pelo trabalho dos artistas não eruditos, até há pouco chamados de populares ou primitivos, presenciei muitas salas especiais e participação de muitos deles em muitas bienais.
Bienal de Veneza, Bienal de Valencia, Bienal Internacional de São Paulo, Bienal Latino-Americana, Bienal do Mercosul, Bienal Naïf de Piracicaba (não concordo com o uso do termo naïf, mas reconheço a importância desse evento promovido pelo Sesc, jogando luz sobre muitos artistas ali revelados) e mais atualmente na 1ª edição da Bienal das Amazônias. Para citar um único exemplo, o pintor paulista José Antonio da Silva participou de dezessete bienais pelo mundo e quase ninguém sabe disso.
Agnaldo Manoel dos Santos, Alcides, Agostinho Batista de Freitas, Antônio Poteiro, Aurelino, Chico da Silva, Chico Tabibuia, Conceição dos Bugres, Elza de Oliveira Souza, G.T.O. (Geraldo Telles de Oliveira), Júlio Martins da Silva, Louco, Madalena dos Santos Reinbolt, Maria Auxiliadora, Mestre Didi, Mirian Inêz da Silva, Neves Torres, Nino, Ranchinho e Samico são artistas do nosso acervo que participaram de uma ou mais dessas diversas bienais.
A escolha do Ayrson para essa missão foi baseada na sua trajetória no mundo das artes e estamos muito felizes com nossa parceria. A seleção dos convidados feita por ele inclui Volpi, Djanira, Antonio Bandeira, Marepe, J Cunha, Heitor dos Prazeres, José Adário, Lúcia Suanê, Marco Paulo Rolla, Juraci Dórea. Um grande, democrático e inclusivo diálogo.
Ayrson trouxe para o projeto o Emerson Dionisio, professor, pesquisador, com um trabalho justamente sobre artistas populares em bienais. Casamento perfeito!
O momento cultural não poderia ser mais propício para esta mostra. Finalmente estamos vivendo tempos de inclusão, de queda de preconceitos e de paradigmas.
Sinto-me feliz e gratificada por há 37 anos vir acreditando e trabalhando a força e o talento desses artistas autodidatas, hoje participando do mercado da arte através do circuito das galerias e das instituições. Durante todos esses anos tenho dito que arte é arte pela excelência e não está em gavetas separadas.
Curtam conosco esta exposição especial!
Vilma Eid
Artistas populares nas bienais de São Paulo
A história de algumas instituições culturais pode parecer tão amalgamada à história da arte brasileira que fica difícil compreendê-las em separado. Talvez esse seja o caso da Academia Imperial de Belas Artes para a produção artística dos oitocentos, da Semana de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo para o modernismo, ou mesmo da Bienal Internacional de São Paulo para a produção artística da segunda metade do século XX. Contudo, um exercício necessário para nossa historiografia é revistar constantemente tais instituições e percebê-las por ângulos distintos. Poucas instituições brasileiras podem ser consideradas pontos privilegiados de observação do comportamento e do funcionamento da cultura e das artes do nosso país como a Bienal de São Paulo. Se contássemos a história dessa bienal pela perspectiva dos artistas populares selecionados para compor suas mostras, essa “estória” estaria mais afeita a surpresas, reveses, censuras, esquecimentos e admirações inconfessas do que a uma mera cadeia lógica de fatos. Decerto, em outubro de 1951, quando abriu suas portas pela primeira vez, a Bienal era uma aposta arriscada e seu futuro não parecia tão certo ou óbvio como nos parece hoje. Jovem, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (1948), a Bienal apostava no modelo de Veneza e na reunião de uma elite internacional capaz de garantir o sucesso da empreitada numa cidade que almejava garantir seu espaço na cena global das artes plásticas. Diante das preocupações estéticas do pós-guerra, do desejo de apresentar as novidades da arte europeia, da ascensão da abstração e das homenagens aos mestres modernistas, é provável que duas têmperas sobre tela, Jesus curando o leproso e Domingo de Ramos, obras da jovem pintora “primitiva” pernambucana Lúcia Suanê, que naquele ano de 1951 recebeu a atenção de críticos e colecionadores como Quirino da Silva e o casal Bardi, tenham chamado pouca atenção da crítica.
Bem antes, Suanê já era caracterizada como uma “artista primitiva”, um rótulo que hoje nos parece inadequado, ou até mesmo hostil. Na ocasião de sua primeira mostra individual, na galeria Itá (São Paulo), em 1946, o crítico Luís Martins, no Diário de São Paulo (3/4/1946), já sentenciava: “É bem o engenho, é bem a tristeza das estradas primitivas, é bem a candura das festas populares o que nos mostra em seu caleidoscópio multicolor”. Ainda sobre a exposição, no Diário da Noite (1/4/1946), Quirino Silva lembrava que os trabalhos da artista “trazem para o ambiente metropolitano de São Paulo as cenas de festa e de luto de ingênua alegria e mudo sofrimento do povo que se espalha pelo interior deste grande país”. Nesses dois textos já estavam presentes as chaves interpretativas que, nos anos seguintes, delimitariam a crítica não apenas ao trabalho de Suanê, mas também ao de outros artistas cuja “pureza de intenções” caracterizava o heterogêneo continente da produção popular-primitiva.[1] Elementos como o nativismo, a ausência de influências externas, o arcaísmo, a sinceridade criativa, a autenticidade, a gratuidade e o autodidatismo estiveram presentes no vocabulário dos críticos ao menos até o início dos anos 1980.
Ao lado de Suanê, estavam José Antonio da Silva e Teresa D’Amico, presenças recorrentes nas discussões sobre a produção primitiva. Na história da Bienal de São Paulo, a década de 1950 foi a mais promissora para os artistas ditos primitivos ou populares, desde a surpresa da cena artística mainstream com a premiação de Heitor dos Prazeres, na primeira edição da Bienal, com sua Moenda, até a presença de artistas cujas marcas do popular eram irrefutáveis, como Djanira da Motta e Silva e Alfredo Volpi. Naqueles anos, para além dos debates entre abstração e figuração, e entre as novas experimentações e as heranças dos primeiros modernismos, outra questão mobilizava críticos, artistas e colecionadores: os limites e as configurações da arte outsider, da art brut, da arte virgem e da folk art, dentre outras variações que não se confundem, mas se interseccionam. Eram rótulos que funcionavam como delimitadores excludentes, mas não necessariamente exclusivos, e que formaram projetos nos interiores dos diferentes tempos dos modernismos, na qualidade de narrativas complementares ou como fatos poéticos intrínsecos à própria dinâmica dos regimes estéticos hegemônicos, conforme nos alertam as prerrogativas conceituais que alicerçaram a “antropofagia” como epicentro do modernismo à brasileira – ou melhor, como epicentro da elite intelectual paulista dos anos de 1920.
Assim sendo, uma nova classe de artistas é reconfigurada após a Segunda Guerra Mundial, cuja premissa mirava uma produção “incólume” às tradições oficiais das belas-artes. No entanto, o debate acima mencionado parece ter sustentado a presença de artistas populares, codificados ou não pelos discursos primitivistas pejorativos. Ao mesmo tempo, a presença de tais artistas estava articulada à tradição modernista dos anos 1910 e 1920, que haviam transformado os sentidos do “primitivo”, associando-o a uma modernidade singular, brasileira e latino-americana. Essa herança de nosso modernismo “primitivo” alcançou e matizou os critérios utilizados pela crítica para compreender a produção de Djanira, Heitor dos Prazeres, Lúcia Suanê, Agnaldo dos Santos, Cidinha Pereira, José Antonio da Silva, Rosina Becker do Valle e Elisa Martins da Silveira, que estão entre os mais conhecidos artistas populares-primitivos selecionados nas cinco primeiras edições da Bienal. Esse alcance alinhava-se às mudanças operadas na recepção da arte popular desde a década anterior, conferindo-lhe um lugar particular, mas não necessariamente privilegiado, nas discussões sobre a constituição e a personalidade das artes brasileiras, como bem mostrou o engajamento de figuras como Luiz Saia, Lina Bo Bardi, Augusto Rodrigues, José Valadares, entre outros.
Nos anos 1960, a Bienal, em suas três primeiras edições (1961, 1963 e 1965), permaneceu aberta a artistas cujas linguagens inspiravam-se na cultura popular ou dela eram diretamente derivadas. Samico, Eurydice Bressane, Raimundo de Oliveira, Mirian, Grauben, Zé Inácio e Antônio Maia estreavam no evento naquele período de intensa mobilização política, dentro e fora do país. A maioria dos artistas populares acolhidos pela Bienal nas primeiras edições voltou a ser selecionada pelas comissões organizadoras. A princípio, as mesmas bienais que premiaram Iberê Camargo e Lygia Clark (1961), Yolanda Mohaly e Darel Valença (1963), Danilo Di Prete e Maria Bonomi (1965), não demostraram contrariedade em acolher, novamente, trabalhos de Heitor dos Prazeres, José Antonio da Silva e Cidinha Pereira.
Em sua sexta edição, Mario Pedrosa explicita que na Seção Brasileira “todas as tendências que assinalam a arte contemporânea estão aqui representadas: Desde os primitivos e figurativos até as últimas manifestações abstracionistas, de geométricos, concretistas, neo-concretistas [sic], tachistas, informais [...]”.[2] Ou seja, o sentido de contemporaneidade incorporava os artistas populares-primitivos.
Todavia, se tais artistas estavam mais ou menos associados às representações valoradas dos distintos primitivismos confluentes à modernização, à urbanização e à nacionalização na cultura brasileira, nas décadas seguintes – por diferentes motivos – o processo de acolhimento da produção popular mudou na Bienal. Podemos olhar como marco dessa mudança a tentativa de censura dos ditos primitivos na Bienal de 1967, apelidada de “A Bienal Pop”.
Mesmo com a ampliação dos debates sobre as novas linguagens na arte, não se poderia prever a reação do corpo de jurados de 1967 diante da produção popular-primitiva. Naquele ano, à exceção de Mario Schenberg, os demais membros do júri de seleção da representação brasileira tomaram, a princípio, uma decisão: barrar a produção “primitiva” da nona edição da Bienal. O fato era inédito. A ausência dos artistas populares-primitivos, num primeiro momento, foi justificada pela escolha de artistas experimentais, preocupados com novas linguagens e renovações estéticas. Ou seja, o contraponto de sustentação da exclusão estava na intenção de publicizar novas pesquisas, inovações e apresentações de novos formatos, tanto do ponto de vista material quanto conceitual.
Graças à intervenção da diretoria da Fundação Bienal, a censura não se efetivou. Numa espécie de “segunda chamada”, foi selecionado um número modesto de nomes, cuja produção poética estava associada aos “primitivos”: Grauben de Monte Lima, Clodomiro Lucas, Waldomiro de Deus, Chico da Silva e José Antonio da Silva, além de Mirian com duas gravuras. Dessa forma, a IX Bienal foi sintomática de uma mudança de postura quanto à presença de tais artistas – como dissemos, frequentemente classificados como primitivos, ingênuos, naifs, outsiders, virgens etc. – nos espaços dedicados à produção moderna-contemporânea brasileira, rompendo com uma convivência tolerada nas edições anteriores da Bienal. Não deixa de ser particularmente sintomático que, no momento em que a arte pop anglo-saxã passa a ser francamente debatida no Brasil, passávamos à rejeição da produção popular como norteadora de um sentido de contemporaneidade, que nesse aspecto nunca se pretendeu inclusiva, nem mesmo dissimulou suas pretensões. Igualmente contraditório é constatar que, já na década de 1970, um número cada vez maior de artistas experimentais optou por pesquisas no campo “arcaico” das artes populares e seus desdobramentos numa cultura em processo de massificação.
Neste primeiro momento da história que nos interessa da Bienal de São Paulo (1951-1967), um nome sobressai quando nos aproximamos dos arquivos e das carreiras de diferentes criadores: José Antonio da Silva, que participou de seis das nove primeiras edições. Podemos explicitar facilmente três motivos para explicar sua recorrência no evento: seu talento, sua fortuna crítica e o papel dos colecionadores em sua carreira. Sobre o talento, basta apontar sua capacidade de reunir motivos que conectam o saudosismo do mundo rural paulista, em sua potência lírica e nostálgica, ao sofrimento e à dor oriundos de condições adversas. A sociedade que criou a Bienal – ávida pelo progresso, pela industrialização e pela urbanização – era a mesma que admirava as pinceladas livres e vibrantes de Silva, e sua capacidade gráfica de sintetizar elementos rurais familiares e que preconizavam, a seu modo, o desaparecimento de um mundo ideal. As qualidades plásticas e a coerência expressiva do pintor arregimentaram muitos críticos de arte, desde Lourival Gomes Machado – nada menos que o primeiro diretor artístico da Bienal –, Paulo Mendes de Almeida e João Cruz Costa, responsáveis por “descobrir” Silva num salão em São José do Rio Preto. Acompanhado de boas críticas, seu percurso foi “meteórico” no circuito de arte de São Paulo e do Rio de Janeiro nos anos posteriores. Dignas de lembrança são as aquisições de quadros do artista por Pietro Maria Bardi para o acervo do recém-criado Museu de Arte de São Paulo (Masp), no final dos anos 1940, e para o Museu de Arte Moderna de Nova York, por ocasião da 1ª Bienal de São Paulo, o que explicita como Silva foi aceito por acervos e coleções de diferentes personalidades. Nesse sentido, Ana Gonçalvez Magalhães salienta o apoio de Matarazzo Sobrinho (Ciccillo) aos artistas ditos primitivos, em especial à carreira de Silva.[3]
É difícil calcular o quanto a admiração de Ciccilo pelos ditos primitivos pode ter influído na decisão de revogar a censura em 1967. De toda forma, uma nova fase de aproximação entre os artistas populares e a Bienal começa a se anunciar a partir da Bienal de 1969, quando nenhum artista do vocabulário popular foi selecionado para compor a Sala de “Arte Mágica, Fantástica e Surrealista”.[4] Os anos 1970 celebram essa nova fase com a instituição das Bienais Nacionais (incluída a Pré-Bienal de 1970) e da edição da Bienal Latino-Americana, de 1978. Os dois projetos foram cruciais para recompor a presença de artistas populares nas seleções realizadas pela Fundação Bienal.
Nas quatro edições das Bienais Nacionais tivemos artistas já experientes no evento, como Chico da Silva e Clodomiro Lucas, e também estreantes, como G.T.O., J Cunha, Mestre Dezinho, Conceição dos Bugres, João Sebastião da Costa, Mestre Expedito, José Valentim Rosa, Ranchinho e Antônio Poteiro. Tais eventos tinham como objetivo atender às demandas por mais participação nacional, ou, em outros termos, participação de artistas do “resto” do Brasil, residentes fora do eixo Rio-São Paulo. Para selecionar artistas de todo o país, a Fundação Bienal montou mostras em diferentes regiões – Belém, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Goiânia e Recife – e patrocinou viagens de gestores e críticos pelo território nacional, além de acolher indicações vindas dos setores culturais dos próprios estados. Cada uma das edições adotou métodos distintos, que atendiam às especificidades de cada contexto, como bem mostrará o título “Brasil, Plástica72”, no momento das comemorações dos 150 anos de independência do Brasil, ou a Bienal de 1976, apelidada de “Bienal sem recusas”, visto que apresentou a impressionante quantidade de aproximadamente 1.200 obras. Zago[5] sublinha que as Bienais Nacionais tiveram como finalidade resolver contradições entre uma emergente arte contemporânea global e as experiências plásticas regionais brasileiras, apelando para a variedade da produção artística no país. Foi na conta da “variedade” e da “pluralidade” que a arte popular (também chamados de mal-amados primitivos[6]) foi acolhida nos eventos daquela década realizados pela Fundação Bienal.
Nesse sentido um caso especial foi a Bienal Latino-Americana de 1978, cujo projeto reaproximava a contemporaneidade das proposições artísticas de matriz e inspiração populares. “Mitos e Magia”, tema francamente controverso da Bienal, refletia um engajamento por uma identidade latina unificada, reunida em torno do realismo mágico e da redefinição da participação da cultura popular, revalorizada no continente a partir do conceito de “sociedades pluriculturais”. Novamente, a arte popular, agora oriunda de diferentes regiões da América Latina, tensionava sua presença no sistema da arte contemporânea mundial, por meio de uma reafirmação regional-continental. Artistas populares como Chico da Silva, G.T.O., Alcides Santos, Antônio Maia, João Sebastião da Costa e Antônio Poteiro foram apresentados na mostra a partir de um conjunto amplo de trabalhos. O viés popular, antropológico e documental da Bienal latina foi atacado tanto pelos defensores da produção experimental, que viam na busca identitária e vernacular parte do projeto do regime ditatorial, quanto por defensores da cultura popular, como o crítico Mirko Lauer, irritado com o isolamento fetichista das obras apresentadas de seus agentes, dos grupos de artistas e das condições de produção das mesmas.
Não podemos deixar de frisar a ausência de artistas cruciais para o debate sobre a produção popular, como Maria Auxiliadora e Madalena Santos Reinbolt. Naquela década, para as edições internacionais, foram selecionadas obras de Chico da Silva, José Tarcísio, José Alves de Oliveira e Messias das Carrancas, e feita uma homenagem a Heitor dos Prazeres, em 1979. Conhecemos a franca crítica do piauiense José Alves de Oliveira, conhecido como Mestre Dezinho, que, embora selecionado na Bienal Nacional de 1974, teve suas obras ignoradas pela organização e pelo júri, preocupados com figuras nacionais conhecidas e com o grande número de estrangeiros.[7] O exemplo descortinava um jogo discursivo que buscou, desde 1970, criar uma forma “inclusiva” na escolha dos artistas brasileiros.
Se a carreira de José Antonio da Silva era crucial para compreender os primeiros anos de relacionamento entre as bienais e os artistas populares-primitivos, o percurso de Chico da Silva – e dos artistas do ateliê ou escola do Pirambu[8] – destaca-se no período posterior. Sua obra conseguiu driblar a tentativa de censura em 1967 e esteve presente na Pré-Bienal de 1970, sendo selecionada para a Bienal Internacional do ano seguinte e compondo o acervo dos quadros escolhidos para a Bienal latina. Francisco Domingos da Silva era pintor de paredes e de muros, e iniciou sua carreira no III Salão Abril de Pintura, na cidade de Fortaleza, em 1944, sendo “descoberto” pelo pintor suíço Jean-Pierre Chabloz. Antes de chegar à Bienal de 1967, a obra de Chico da Silva já tinha sido apresentada em seis mostras internacionais e na Bienal de Veneza. A partir da segunda metade dos anos 1960, ele se consagrava como pintor de animais e outros seres fantásticos. A visibilidade da produção do artista descendente de indígenas se deu, também, pelas mãos de dois influentes galeristas e colecionadores estrangeiros radicados no Brasil: o romeno Jean Boghici e o italiano Franco Terra Nova.
A ausência de obras de Chico da Silva em bienais posteriores não se deu exclusivamente por conta das condições de saúde do artista naqueles anos, mas sim devido a uma crise, que nesse momento estava sendo anunciada. As experiências das Bienais Nacionais e da Latino-Americana trouxeram um impasse à Fundação Bienal no final dos anos de 1970: investir nos temas continentais ou realinhar-se à arte global. Em 1980, a decisão pela manutenção do caráter internacionalista e a posterior ascensão da cultura curatorial teriam especial impacto na participação de artistas ditos populares-primitivos.
As décadas de 1980 e 1990 viram a participação de poucos artistas oriundos desse eixo artístico, embora se possa apontar, com razoável facilidade, a presença de distintas manifestações das culturas populares em trabalhos de outros artistas brasileiros e mesmo nas representações de países estrangeiros. As bienais subsequentes, especialmente aquelas sob curadoria de Walter Zanini, Sheila Leiner e, posteriormente, Nelson Aguilar, redefiniram a presença das propostas “primitivistas”, alocando-as para salas e seções especiais, cujo investimento centrou-se na apresentação da arte outsider.
Essa perspectiva já fica patente na organização da mostra “Arte Incomum”, com curadoria de Annateresa Frabris e Victor Musgrave, para a Bienal de 1981. Nessa iniciativa, as produções de Antônio Poteiro, G.T.O., Eli Heil e a Casa da Flor de Gabriel dos Santos – apresentado pelas fotografias de José Roberto Cecato – são tratadas pela plataforma comum da arte “bruta”, cujos autodidatismo e psique são as matrizes convocadas para interpretar os artistas brasileiros e estrangeiros selecionados. O breve texto de Fabris sobre Poteiro mostra o movimento interpretativo:
O mundo singular de Poteiro, fruto de sonhos, mas mais frequentemente daquelas camadas profundas da psique que Jung denomina de inconsciente coletivo, revela-nos uma riqueza imaginativa e criadora que o leva a buscar incessantemente formas através das quais possa extravasar a própria ânsia de moldar novas realidades.[9]
Em resposta a Leonor Amarante, Walter Zanini, curador geral dessa Bienal, esclareceu a cisão entre “arte incomum” e “arte popular”: “toda linguagem que se mantém distante da arte erudita e que também é distinta de toda a produção considerada popular”.[10]
Outra iniciativa semelhante foi a apresentação da sala de “Gravura Popular Brasileira”, parte do acervo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, na Bienal de 1985. Organizada por Zuleide Martins de Azevedo, a sala apresentava xilogravuras de artistas como Mestre Noza, Walderedo Gonçalves, Álvaro Barbosa, Antonio Lucena e Damásio Paulo, além de obras de autores desconhecidos.
“Arte Incomum” e “Gravura Popular Brasileira” são categorias sintomáticas do modo como a produção popular foi segmentada nas bienais seguintes. Com a redemocratização, em 1985, essa segmentação acentuou-se. Salvo raras exceções, como Poteiro, G.T.O., José Antonio da Silva e Wellington Virgolino, a exclusão da arte popular e suas variações é evidente. Duas razões, entre tantas, nos ajudam a compreender esse fenômeno.
A primeira está intimamente vinculada à forma com que a cultura popular foi traduzida pelos gestores da ditadura civil-militar no país (1964-1985): revestida por um discurso nacionalista, cujas premissas buscavam o enaltecimento da autenticidade do popular como parte do discurso patrimonialista de brasilidade. Mesmo diante de iniciativas contrárias, parte da cultura popular foi (re)folclorizada pelo regime autoritário. A segunda razão pauta-se por uma reorganização das linguagens e das poéticas operadas para defender o monopólio da “arte contemporânea” dentro da Bienal de São Paulo. Foram anos em que os curadores tiveram que enfrentar críticas sobre o caráter histórico de algumas seções, a presença insistente de representações nacionais e o fantasma do “enciclopedismo” ou do “ecletismo” sobre as seleções orientadas pelas equipes curatoriais.
As duas razões ajudaram a criar um ambiente inóspito para as produções ditas populares, mesmo com o regresso das obras de José Antonio da Silva na mostra “Imaginários Singulares”, dentro da 19ª Bienal de São Paulo, em 1987. Nem mesmo a Bienal “antropofágica” de 1998 reintroduziu a produção popular nos debates sobre os primitivismos que atravessavam a herança modernista e a sua participação nas chaves de entendimento da arte contemporânea. No âmbito da Fundação Bienal, a arte popular só retoma seu papel protagonista com um núcleo exclusivamente dedicado a ela na “Mostra do Redescobrimento: Brasil 500 anos”, realizada em 2000.
Já se vão quase vinte anos que a curadoria da 27ª Bienal Internacional de São Paulo, sob o comando de Lisette Lagnado, nos provocou a pensar os territórios da dor, dos sofrimentos, das migrações, do pixo e dos diferentes orientes a partir da metáfora do Acre.[11] “Como viver junto”, tema derradeiro da mostra, inspirava-se em notas de um seminário de Roland Barthes, evocava posições políticas e participações críticas inspiradas em artistas cruciais para uma história da arte global, como Lygia Clark, Hélio Oiticica, Marcel Broodthaers, Ana Mendieta, Gordon Matta-Clark, Rirkrit Tiravanija e o artista acriano Hélio Melo – esse último, provavelmente, um desconhecido para a grande maioria do público e, sobremaneira, dos especialistas da arte contemporânea. Entre um Hélio [Oiticica] e outro [Melo], a Bienal navegou sobre os limites do território-arte. Ao dotar de contemporaneidade o “pintor da floresta”, mesmo que timidamente, o evento se reaproximava da arte popular e de todos os adjetivos, substantivos e substâncias utilizados nas décadas anteriores.
Melo foi uma exceção. Assim, nas primeiras duas décadas de nosso século, a segmentação e a exclusão permanecem vigentes com a consolidação de um circuito emergente dedicado a um modelo de contemporaneidade, excludente em muitos aspectos. É preciso pontuar que a presença de artistas próximos à linguagem que os críticos compreendiam como autodidatas, primitivas, folk ou naif em outras representações nacionais, como o uruguaio Pedro Figari, o sul-africano Sydney Kumalo, a búlgara Violeta Grivichka, a libanesa Sophie Yéramian, a nicaraguense Adela Vargas, o paraguaio José Laterza, o haitiano Jean Raynald Exumé e o mexicano Chucho Reyes (Jesús Reyes Ferreira), entre tantos outros.[12] Na mesma direção, cabe-nos lembrar outros artistas selecionados para a representação brasileira ao logo da história da Bienal que, em suas diferentes versões – internacional, nacional, pré, latino-americana –, ocupavam o lugar limítrofe entre a produção dita popular-primitiva e a dita arte moderna-contemporânea: Djanira, Fernando Diniz, Mestre Didi, Farnese de Andrade, Miguel dos Santos, Bispo do Rosário e Samico são apenas alguns exemplos de artistas cujos lugares e fronteiras classificatórios sempre foram marcados por discussões polêmicas a acaloradas.
Só recentemente e com alguma timidez, projetos curatoriais têm atraído artistas brasileiros vinculados à produção cultural e artística popular, como o samba, o cordel, as imagens religiosas populares – como os ex-votos –, num regime de aproximações cada vez mais comum. Pode-se admitir que parte do que considerávamos como “arte popular” foi interiorizada em projetos e processos poéticos contemporâneos, ampliando as noções relacionadas ao “popular”. Tais artistas parecem preocupados em reconfigurar os limites da cultura popular, descentralizando-a, o que resulta em novas disputas, problemas e, por que não dizer, novas formas de beleza, dentro e fora das bienais.
Emerson Dionisio Oliveira
Historiador da Arte
[1] O uso desse termo possui caráter analítico e hoje se inscreve numa dupla função: permite que possamos nos aproximar dos contextos adversos e discriminatórios em que muitos artistas desenvolveram suas carreiras, e ampliar o escopo dos discursos primitivistas que atravessaram a compreensão da arte popular, ao menos até recentemente.
[2] Ver Mario Pedrosa, “Introdução”. Catálogo da VI Bienal Internacional de São Paulo. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1961, p. 31.
[3] Ver Ana Gonçalves Magalhães. Arte Moderna, arte popular, cinema, teatro e um presépio napolitano –São Paulo, 1940-50. Anais do Colóquio Labex Brasil – França: Uma história da arte alternativa: outros objetos, outras histórias, 2015.
[4] Decerto, o artista que ocupava o limite entre uma produção moderna-contemporânea e a produção ingênua era Paulo Menten, então selecionado para a referida sala, mesmo que a intenção tenha sido também apresentar artistas com “pesquisas mais recentes, ou utilizando materiais introduzidos pela tecnologia moderna, junto a esculturas vindas da mão do povo denotando os contrastes que caracterizam toda a nossa cultura”; ver Edila Mangabeira Unger, “Sala de Artes Mágica, Fantástica e Surrealista”, in X Bienal de São Paulo, catálogo de exposição. (São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1969, p. 41).
[5] Para mais detalhes, ver Renata de Oliveira Maia Zago, The Other Biennial: São Paulo’s " National Biennial", 1970-6. Tate Papers, v. 1, p. 1-28, 2022.
[6] A expressão é de Olney Kruse, ao relatar seu método de aproximação de artistas de várias partes do Brasil, via jornais locais: “convidar todos os artistas de cada Estado Brasileiro, sem nenhum preconceito quanto ao seu ‘estilo’ ou ‘técnica’, desde os mal-amados ‘primitivos’ até os idolatrados artistas da ‘vanguarda’”. Ver “Viagem ao Brasil: Participação dos Estados”. Catálogo Bienal Nacional 1974. Fundação Bienal, São Paulo, 1974, p. 21.
[7] Ver Francisco Alambert e Polyana Canhête. Bienais de São Paulo: da era dos museus à era dos curadores. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
[8] “Entre 1970 e 1977, a grande maioria dos trabalhos que levavam a assinatura de Chico da Silva passou a ser realizada pelos artistas do Pirambu”. Thierry Freitas, “Chico da Silva: modos de fazer”, in: Chico da Silva e o ateliê do Pirambu. Catálogo de exposição. Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2023, p. 27.
[9] Ver “Cosmogonias Outras”, de Annateresa Fabris, Catálogo da Exposição de Arte Incomum, Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 20.
[10] Trecho citado no artigo de Arley Andriolo “A recepção da exposição de Arte Incomum e o problema da duração dos julgamentos artísticos”, revista Visualidades, Goiânia, v. 8, n. 2, 2012, p. 97.
[11] A Bienal levou artistas para uma residência no estado do Acre, cujo objetivo era “pensar um conjunto de fatores, tais como população indígena, floresta, industrialização, biopoder”. Lisette Lagnado, “No amor e na adversidade”. Catálogo da 27º Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal, 2006, p. 55.
[12] A Bienal brasileira, em 1967, era lembrada por abrir-se aos outros países do continente americano e aos demais continentes. Dos 61 países, aproximadamente um quarto era da Ásia, da África e da Oceania, com o aumento do chamado “Terceiro Mundo”; ver Liliana Helita Torres Mendes de Oliveira, A bienal pop: a pop art analisada através das representações dos Estados Unidos e do Brasil na IX Bienal Internacional de São Paulo. (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 1993), p. 9.
REVERSOS & TRANSVERSOS: Artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais
Por Ayrson Heráclito
O processo de racialização brasileiro, e o seu racismo subsequente, vem sendo problematizado pela história recente do país. É neste contexto, quando emergem novos sujeitos da vida política, como os afro-indígenas, que devemos entender a opção, inédita, da 35ª Bienal Internacional de São Paulo, por compor uma curadoria majoritariamente negra. A nossa proposta curatorial, na presente exposição, busca dialogar com esse momento transformador. Ao questionarmos sobre o lugar dos artistas do povo nas bienais, queremos denunciar as práticas históricas de segregação que orientaram muito das bienais brasileiras, ao tempo em que nos irmanamos como a ousadia do evento na sua luta contra as políticas de exclusão.
A ideia de popular, no sistema de arte brasileiro, sempre acompanhou discussões mais amplas sobre os conceitos de povo e identidade nacional. Tais reflexões estão associadas à criação da imagem de um Brasil independente e, supostamente, livre do seu passado colonial. Na primeira metade do século XX, essa questão sempre foi objeto de disputa, de diferentes grupos e regiões, cuja maior tensão se dá entre o grupo regionalista de Gilberto Freyre e o grupo modernista de São Paulo.
Freyre via a cultura popular como um acervo da identidade nordestina. Tal análise é embasada no entendimento de um Brasil profundo e tradicionalista, fruto da síntese miscigenada das três raças matriciais que constituem o povo brasileiro. Segundo a leitura desse autor, podemos pensar que esse acervo já é uma produção da modernidade. É por isso que ele tenta criar uma redoma de proteção, uma “política regionalista” de salvaguarda aos bens culturais populares.
Os artistas modernos associados ao projeto do Sudeste, em oposição a Freyre, irão se inspirar no acervo da cultura popular, para, a partir daí, criar as suas obras. É por isso que Tarsila bebe na palheta das cores caipiras das cidades coloniais mineiras. Com forte penetração nos aparelhos de Estado, importa salientar que essa corrente instaura as instituições e políticas públicas para salvaguarda da cultura popular brasileira. O anteprojeto de criação do SPHAN, coordenado por Rodrigo Mello Franco, por exemplo, fora escrito por Mário de Andrade.
Na década de 1950, uma terceira via para essa discussão foi aberta por Lina Bo Bardi. Informada pelo conceito de nacional popular do filósofo italiano Antonio Gramsci, ela irá construir todo o seu olhar político-estético. Seu diferencial é compreender o próprio modernismo enquanto uma experiência social e popular. Dessa forma, ela promove uma superação entre cultura moderna e cultura popular, retirando, dessa maneira, o reducionismo folclórico ao qual o tema do popular estava circunscrito. Por estarmos de acordo com a leitura de Lina, optamos pela denominação de “artistas do povo” em detrimento de “artista popular”.
O pensamento decolonial e o pensamento antirracista, no momento histórico atual, vêm pressionando as hierarquias tradicionais do sistema da arte, com seus diferentes sujeitos, linguagens e poéticas, promovendo, por consequência, uma profunda revisão nas concepções de arte. Daí que os marcadores étnicos-raciais e sociais, que enclausuravam artistas em rótulos, como “primitivos”, “primitivistas”, “naifes (ingênuos)”, “populares”, estão sendo explodidos em seus significados de subjugação política, denunciando a relação da arte com as estruturas de dominação e com as desigualdades sociais. Esse novo contexto exige profundas transformações ideológicas das concepções de cultura e uma ressignificação do campo do simbólico, o que levaria a uma transformação da ideia de cultura popular.
A presente investigação se debruça sobre o “fenômeno das bienais”, por ser ele um marcador crítico das produções artísticas, visto o seu caráter de incentivo e legitimação da produção da arte. Nosso objetivo é observar a inserção da arte do povo nas bienais. Para tal exercício, perguntamos sobre as relações entre: arte e mercado; arte e legitimação institucional; “artistas” e “artistas do povo”; arte popular e arte de vanguarda; arte e dominação; a emergência dos sujeitos artistas afro-indígenas. Para tanto, estabelecemos o seguinte recorte investigativo: 1) Bienais internacionais; 2) Bienais nacionais; 3) Bienal Latino-americana; 4) Mostra do Redescobrimento, e “amigos de produções poéticas semelhantes”.
Nossa trajetória, nesse universo tão complexo, se deu através de operações de aproximações, diálogos e deslocamentos, das distintas poéticas, dos artistas do povo e dos ditos artistas eruditos no sistema da arte brasileira. A partir de então, foi possível estabelecer uma espécie de revisão crítica dos espaços sociais e simbólicos, reservados a diferentes agentes no contexto dos grandes eventos de consagração artística (bienais). Por exemplo, ao reunirmos na exposição os trabalhos de Volpi e Lúcia Suanê, queremos enfatizar a profunda semelhança poética dos artistas. Os referidos artistas têm trabalhos de valor inquestionável pela crítica especializada. Então perguntamos: o que legitima o abismo do valor comercial entre as obras de Volpi e Suanê no mercado de arte?
O projeto modernista sudestino também admite contradições, quando seleciona artistas do povo, alçando-os aos mais elevados patamares da arte brasileira. Esse é o caso de Volpi e Djanira, que estão lado a lado com os “artistas” do modernismo. Em relação à arte contemporânea, encontramos Marepe, um artista baiano que, partindo da cultura popular, promove deslocamentos e apropriações, abrasileirando o conceito de ready-made. A mesma sorte de ser incluído nos altos circuitos, não teve Alcides Pereira nem Antônio Poteiro, que ficaram aprisionados a uma ideia exótica e tradicional da arte popular. Por essa razão, Alcides e Poteiro, normalmente, não são vistos como agentes formuladores da modernidade e contemporaneidade na arte.
Ideologicamente a modernidade utiliza imagens da cultura popular a serviço da dominação burguesa. Associá-la a um saber autêntico, puro, alheio às transformações da sociedade, produz dessa cultura do povo uma imagem alienada. No campo das artes visuais, relaciona-se arte popular a uma figuração ingênua, executada por “artista” autodidata, em oposição aos “artistas” ditos eruditos, produtores da vanguarda, como aqueles relacionados à arte abstrata. Convidamos para uma experiência de fruição nas obras de Ranchinho e Antonio Bandeira, respectivamente vistos como “artista do povo” e “artista de vanguarda”. O primeiro, autodidata, filho de boia-fria e com problemas mentais, produzia uma sofisticada pintura, comparada à dos grandes mestres do pós-impressionismo europeu. Mas, a sua condição de classe não lhe permitia usufruir do status de artista de vanguarda. O segundo, considerado mestre do abstracionismo brasileiro, mesmo autodidata, teve acesso à vanguarda artística internacional através de bolsas para estudo no exterior. Sendo eles artistas de elevado grau de elaboração estética, Ranchinho nunca ultrapassou as fronteiras hierarquizantes da arte.
É importante também ressaltar o caráter complexo de como as classificações serão subvertidas no mundo das artes. É o caso dos artistas Gilvan Samico e Juraci Dórea, que foram associados a concepções do Movimento Armorial,[1] mas que sempre foram vistos como artistas contemporâneos, vide a inclusão das suas obras em grandes curadorias históricas.
A pesquisa prossegue refletindo sobre arte contemporânea e arte popular. Vejamos um exemplo da pop art no Brasil. Esta, que se define como produção de um “folclore urbano”, onde o artista busca interpretar a cultura popular e a cultura de massa, terá em artistas como Aurelino dos Santos e Mirian Inêz representações atípicas, por transitarem entre os limites da arte popular e da pop art. Isso é evidente nas assemblagens de Aurelino, com materiais inéditos à moda das combiner de Rauschenberg, e na visualidade de Mirian, homenageando ícones da cultura pop brasileira.
Constatamos em nossa investigação que na história das bienais internacionais de São Paulo, a partir da segunda metade da década de 1960, com a consolidação das estéticas de arte contemporânea, se esvazia, gradativamente, a participação dos artistas do povo. Essa realidade vem sendo questionada no cenário artístico atual, pela inserção de novos e diversos sujeitos, que vem alterando e diversificando o perfil do artista e a ideia de arte. A grande visibilidade da arte dos povos originários e de artistas negros nas recentes edições das bienais no Brasil comprovam essas mudanças.
Desde o meu envolvimento na criação do núcleo curatorial Rotas e transes: Áfricas, Jamaica e Bahia, no projeto de Histórias Afro-Atlânticas, venho refletindo sobres os embates das ditas formas periféricas e subversivas (muitas delas nomeadas de arte popular) da produção artística com os sistemas hegemônicos da arte ocidental.
Movido por essa atenção às margens, quero entender como no Brasil trajetórias estéticas subalternizadas e vicinais denunciam formas de lutas e resistências das populações afro-indígenas, contra as politicas de controle e assujeitamentos coloniais.
Nessa perspectiva, encontramos em espaços invisibilizados e não legitimados pelo sistema da arte, como as aldeias hippies, as comunidades originárias, os quilombos, uma contracultura estrategicamente potente nas suas investidas contra o status quo da arte contemporânea. São esses os territórios produtores de uma visibilidade áspera, tradutora de processos artísticos pulsantes. Daí que as obras de J. Cunha e Louco precisam ser compreendidas enquanto marcos da vanguarda tropicalista brasileira, longe do folclorismo a que estão aprisionadas.
Dalton de Paula e Xadalu Tupã Jekupé representam, nesta curadoria, esses artistas emergentes. Com uma produção artística comprometida e associada com as práticas antirracistas e decoloniais – fruto das políticas de reparação e das ações afirmativas –, os artistas em questão constroem suas poéticas afirmando o seu pertencimento étnico-racial. Visibilizando suas concepções cosmogônicas, lutando contra o apagamento e a reconstrução das memórias afro-indígenas, ao tempo em que lançam luzes sobre as suas ancestralidades, suas ações reivindicam que se reconheçam, dessa forma, os seus lugares de fala.
A ocupação de espaços institucionais da arte, com a desconstrução de seus paradigmas excludentes e suas práticas de dominação, é um movimento que vem ganhando força no sistema da arte. É preciso democratizar a produção, a difusão e a reflexão do simbólico. Todos têm que ser convidados para o debate – instituições culturais, públicos, artistas, curadores, críticos de arte, doadores, colecionadores, galeristas e empresários. Todos devem ser responsáveis pela construção de uma sociedade redimida das suas desigualdades. Só assim poderemos avançar e conceber um sistema de arte diverso e inclusivo.
[1] Movimento Armorial: criado em 1970 por Ariano Suassuna e que propunha um conceito de arte “autenticamente” brasileira, popular, ao modo de Gilberto Freyre.
Exposição Reversos e Transversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais redimensiona a necessidade de revisão crítica sobre a representatividade da cultura popular
Com curadoria de Ayrson Heráclito e organizada pela Galeria Estação, vitrine histórica de projeção da riqueza ancestral e intuitiva de artistas do povo de diferentes regiões do Brasil, mostra reúne trabalhos de 42 nomes consagrados dentro e fora do país
Uma acurada investigação sobre a inserção crítica da chamada arte popular em algumas das mais expressivas bienais realizadas nas últimas sete décadas, dentro e fora do Brasil: é o que apresenta ao público paulistano a mostra coletiva Reversos e Transversos: artistas fora do eixo (e amigos) nas bienais, com abertura em 24 de agosto, na Galeria Estação.
Reunindo um instigante recorte de trabalhos de 42 artistas – um painel multifacetado, de diferentes técnicas, tradições e suportes – a exposição, que fica aberta para visitação até 28 de outubro de 2023, tem curadoria do professor, curador e artista baiano Ayrson Heráclito, celebrado por suas impactantes reflexões sobre as interseções entre arte e religião e que participará, inclusive, da próxima edição da Bienal de Arte de São Paulo, em setembro. Um mês antes, outros dois artistas que integram a mostra, Xadalu Tupã Jekupé e Chico da Silva (Francisco da Silva), estão entre os selecionados para a primeira edição da Bienal das Amazônias, que será aberta em 4 de agosto.
Nessa imponente seleção de trabalhos, que também explicita interlocuções estético-geracionais, Heráclito chama a atenção do público para a crescente necessidade de revisões inadiáveis sobre temáticas urgentes que têm se desdobrado em novas perspectivas de compreensão inclusiva sobre a representatividade sociopolítica da arte popular brasileira no ambiente da chamada arte erudita.
“O pensamento decolonial e o pensamento antirracista, no momento histórico atual, vêm pressionando as hierarquias tradicionais do sistema da arte, com seus diferentes sujeitos, linguagens e poéticas, promovendo, por consequência, uma profunda revisão nas concepções de arte. Daí que os marcadores étnicos-raciais e sociais, que enclausuravam artistas em rótulos – como ‘primitivos’, ‘primitivistas’, ‘naifes (ingênuos)’, ‘populares’ – estão sendo explodidos em seus significados de subjugação política, denunciando a relação da arte com as estruturas de dominação e com as desigualdades sociais”, defende Heráclito.
No desenvolvimento de sua sensível proposta investigativa, realizada com o apoio de Emerson Dionísio, historiador com um trabalho que atualmente aborda a presença de artistas populares em bienais, Heráclito estabeleceu pesquisas sobre quatro principais frentes: bienais internacionais; bienais nacionais; bienais latino-americanas; a Mostra do Redescobrimento, organizada pela Fundação Bienal em 2000; e um recorte livre que o curador baiano classificou como “amigos de produções poéticas semelhantes”.
Momento transformador
Nesse contexto de ressignificações, escancarado com as proposições da nova mostra organizada pela Galeria Estação, transformações das concepções do que é erudito e uma reinterpretação de seu campo simbólico têm também levado a uma revisão crítica da ideia de cultura popular. Afinal, arte e política têm estabelecido novos diálogos no campo da representatividade, da figuração, da abstração e da performance.
Discussões escancaradas, por exemplo, nas escolhas políticas da 35ª Bienal de São Paulo, com abertura em setembro próximo e com projeto curatorial coletivo concebido por Manuel Borja-Villel e três celebrados curadores negros, Diane Lima, Grada Kilomba e Hélio Menezes. Com o tema Coreografias do Impossível, a edição 2023 da Bienal também promete ser marcada por uma representatividade inédita de novos sujeitos da vida política brasileira, com a escolha majoritária de artistas afro-indígenas.
Em Reversos e Transversos a poética defendida por Ayrson Heráclito também soma forças para potencializar esse momento transformador ao questionar a cronologia histórica da representatividade dos artistas do povo nas grandes bienais, denunciando, assim, décadas de segregação percebidas desde a primeira Bienal de São Paulo, de 1951, quando, rompendo uma barreira de invisibilidade, Heitor dos Prazeres recebe a medalha de prata na categoria “Pintura Nacional”, com a tela Moenda; Lúcia Suanê ganha visibilidade com as pinturas Jesus Curando o Leproso e Domingo de Ramos; e José Antonio da Silva, um trabalhador rural e artista autodidata, recebe o Prêmio Aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
A despeito dos esforços históricos de grandes eventos, como a Bienal de São Paulo, em promover uma gradativa luta contra políticas de exclusão, vivenciamos, hoje, uma conjunção inédita de valorização de manifestações artísticas havia décadas subjugadas, reitera Vilma Eid, sócia-fundadora da Galeria Estação.
“O momento cultural não poderia ser mais propício para esta mostra. Finalmente estamos vivendo tempos de inclusão, de queda de preconceitos e de paradigmas. Sinto-me feliz e gratificada por, há 37 anos, vir acreditando e trabalhando a força e o talento desses artistas autodidatas, hoje participando do mercado da arte através do circuito das galerias e das instituições. Durante todos esses anos tenho dito que arte é arte pela excelência e não está em gavetas separadas. A escolha do Ayrson para a curadoria da exposição foi baseada na sua importante trajetória no mundo das artes. Estamos muito felizes com essa parceria. A seleção dos convidados feita por ele inclui Volpi, Djanira, Antonio Bandeira, Marepe, J Cunha, Heitor dos Prazeres, José Adário, Lúcia Suanê, Marco Paulo Rolla, Juraci Dórea. Um grande, democrático e inclusivo diálogo”, celebra Vilma.
Confira a lista completa dos 42 artistas que compõem a mostra Reversos e Transversos: Artistas fora do eixo (e amigos nas) bienais, que terá uma visita guiada (aberta e sem necessidade de inscrição prévia) em 26 de agosto, às 12h, com o curador Ayrson Heráclito.
Agnaldo Manoel dos Santos – Agostinho Batista de Freitas – Alcides Pereira dos Santos – Alfredo Volpi – Antonio Bandeira – Antonio Poteiro – Arthur Pereira – Aurelino dos Santos – Babalu – Chico da Silva – Chico Tabibuia – Conceição dos Bugres – Dalton Paula – Djanira – Elza de Oliveira Souza – G.T.O. – Heitor dos Prazeres – Izabel Mendes da Cunha – J Cunha – José Adário – José Antônio da Silva – José Bezerra – Júlio Martins da Silva – Juraci Dórea – Louco (Boaventura da Silva Filho) – Lucia Suanê – Madalena – Marco Paulo Rolla – Marepe – Maria Auxiliadora – Mestre Didi – Mestre Guarany – Miriam Inês da Silva Cerqueira – Neves Torres – Nilson Pimenta – Nino – Pedro Paulo Leal – Ranchinho – Samico – Véio – Xadalu – Zica Bérgami.
SOBRE A GALERIA ESTAÇÃO
Com um acervo entre os pioneiros e mais importantes do país, a Galeria Estação, inaugurada no final de 2004 por Vilma Eid e Roberto Eid Philipp, consagrou-se por revelar e promover a produção de arte brasileira não-erudita. A sua atuação foi decisiva pela inclusão dessa linguagem no circuito artístico contemporâneo ao editar publicações e realizar exposições individuais e coletivas sob o olhar dos principais curadores e críticos do país. O elenco, que passou a ocupar espaço na mídia especializada, vem conquistando ainda a cena internacional ao participar, entre outras, das exposições Histoire de Voir, na Fondation Cartier pour l’Art Contemporain (França), em 2012, e da Bienal Entre dois Mares – São Paulo | Valencia, na Espanha, em 2007. Emblemática desse desempenho internacional foi a mostra individual do Veio – Cícero Alves dos Santos, em Veneza, paralelamente à Bienal de Artes, em 2013. No Brasil, além de individuais e de integrar coletivas prestigiadas, os artistas da galeria têm suas obras em acervos de importantes colecionadores brasileiros e de instituições de grande prestígio e reconhecimento, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo, o Museu Afro Brasil (SP), o Pavilhão das Culturas Brasileiras (SP), o Instituto Itaú Cultural (SP), o SESC São Paulo, o MAM- Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e o MAR, na capital fluminense.
SERVIÇO
Reversos e Transversos: Artistas fora do eixo (e amigos nas) bienais
Quando: 24/8 a 28/10/2023
Onde: Galeria Estação
Endereço: Rua Ferreira Araújo, 625 - Pinheiros, São Paulo
Abertura: 24/8 (quinta-feira) | 18h-21h
Visita guiada com o curador Ayrson Heráclito: 26/8 (sábado), às 12h
Horários de funcionamento da galeria: segunda a sexta, das 11h às 19h; sábados, das 11h às 15h; não abre aos domingos.
Tel: 11 3813-7253
Email:contato@galeriaestacao.com.br
Site:http://www.galeriaestacao.com.br/
Instagram: @galeriaestacao