Fernando Rodrigues - Seu Fernando
“Minha arte tem uma inteligência que só os artistas da natureza podem compreender...”
Com essa frase, Seu Fernando, conhecido como Fernando da Ilha do Ferro, mostra sua perspicácia.
Morava no povoado de Ilha do Ferro, no município de Pão de Açúcar, em Alagoas. Analfabeto, depois do ofício de sapateiro na infância, aos 70 anos começou a esculpir em galhos de árvore e troncos que encontrava no mato. Rapidamente sua fama se espalhou pelo Brasil e no exterior.
Fazia banquinhos e cadeiras, muitas vezes com inscrições e histórias da sua imaginação. Humilde, com sua simplicidade impôs ao povoado uma mudança crucial – outros passaram a criar inspirados por ele, de tal maneira que hoje, em território brasileiro, não existe alguém que nunca ouviu falar da Ilha do Ferro. O povoado transformou-se rapidamente em ponto turístico, graças à sua localização à beira do rio São Francisco.
O artista participou de exposições importantes, como a da inauguração do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Na mostra havia uma sala com cadeiras dos Irmãos Campana e do Seu Fernando.
Infelizmente, não o conheci pessoalmente. Sua obra, sim, conheço há mais de vinte anos, e agora senti que estava na hora de mostrá-lo em São Paulo em uma individual.
Seu Fernando é conhecido por arquitetos renomados que não hesitam em colocar suas esculturas nas residências mais sofisticadas. A escolha do arquiteto Guilherme Wisnik foi natural. Jovem, cabeça aberta, optou pelo trabalho de curadoria, o que tem feito com muito êxito.
Aí está. Essa foi a nossa escolha para o início de 2021, esperando que, apesar da Covid-19, um grande número de pessoas possa visitá-la.
Divirtam-se.
Vilma Eid
O fantástico no cotidiano
Guilherme Wisnik
Fernando Rodrigues dos Santos (1928-2009), ou simplesmente “Seu Fernando”, como era conhecido, trabalhava com madeiras que encontrava em seu cotidiano, construindo tanto peças rústicas de mobiliário (bancos, mesas e cadeiras) quanto esculturas de bichos que povoavam a sua imaginação. Pegava tocos de pau, como dizia. Isto é, restos de troncos e galhos, mas também raízes, que encontrava ali mesmo, nas imediações do povoado da Ilha do Ferro, em Alagoas, região do Baixo São Francisco, onde nasceu e viveu. Madeiras que, muitas vezes, eram também trazidas pelo próprio rio em suas enchentes, e encontradas por Fernando em suas margens, ou no seu leito, quando saía para pescar. São, em geral, madeiras moles e curvilíneas, ou retorcidas, típicas da vegetação da caatinga, como o umbuzeiro e o mulungu, e às vezes presentes também em áreas alagadas, como os mangues, tal como no caso da craibeira. No vídeo Fernando Rodrigues, o guardião de memórias (2007), de Maria Amélia Vieira e Dalton Costa, o artista conta que em 1982, por conta da construção de uma estrada que passa próximo à Ilha do Ferro, ele se viu obrigado a cortar um pé de mulungu, e, com isso, acabou decidindo aproveitar essa madeira para outros fins, começando assim a sua produção de móveis e, depois, de esculturas.
Apesar do nome, a Ilha do Ferro não tem ferro, e também não é uma ilha, e sim um pequeno povoado situado na margem esquerda do Rio São Francisco, que conta com pouco mais de 450 habitantes, e pertence ao município de Pão de Açúcar. Essa região do Baixo São Francisco conserva tradições artesanais importantes, que remontam a influências ibéricas longínquas. Refiro-me justamente ao rico trabalho artesanal sobre madeira, por um lado, e à longa tradição do bordado sobre linho, por outro.[1] E se a região como um todo mantém viva essa tradição do bordado, atraindo admiradores e compradores de fora em número cada vez maior, a comunidade da Ilha do Ferro, especificamente, é responsável pelo desenvolvimento de um ramo muito celebrado dessa tradição têxtil: o bordado Boa Noite, nome que homenageia uma flor da região. Trata-se de uma técnica que primeiro desfia o tecido para depois preenchê-lo com tramas geométricas formando quadrados. E, como o preenchimento não é total, constrói arranjos sutilmente leves e vazados, ainda que intensamente adornados.
Esse conhecimento artesanal, transmitido de geração em geração entre avós, mães e filhas, é, em grande medida, o equivalente feminino de uma outra tradição também importante na região, cultivada entre os homens, de trabalho manual sobre a madeira, que visa a construção de objetos utilitários. Trabalho de carpintaria desenvolvido para a construção de barcos e carros de boi, como é fácil imaginar, mas também de tamancos para os pés. Sim, tamancos de madeira e couro, próprios à cultura sertaneja, e que eram de uso corrente na região do Baixo São Francisco até o momento em que as novas sandálias de borracha dominaram o mercado, a partir, mais ou menos, dos anos 1960, tornando obsoleto esse conhecimento manual. Filho de tamanqueiro, Seu Fernando aprendeu o ofício com o pai, e chegou a trabalhar no ramo em sua juventude. Talhando a madeira, também construiu móveis, como camas e berços, além de selas para a montaria em cavalos e jegues (cangalha).
Quando o fotógrafo Celso Brandão e a museóloga Carmen Lúcia Dantas visitaram a Ilha do Ferro, no início da década de 1980, se encantaram com alguns singelos bancos de madeira existentes num botequim do vilarejo, feitos pelo Seu Fernando.[2] Eram peças maciças, diretamente escavadas em troncos, com corpos de perfis sinuosos arrematados por bases e assentos sólidos, lembrando a pureza essencialista de algumas esculturas de Brancusi (embora concebidas longe dessa referência). Como está claro, eram objetos de uso cotidiano bastante distintos desses que se tornaram conhecidos hoje como sendo o mobiliário maduro de Fernando Rodrigues, com aspecto essencialmente orgânico, contorcido e instável.
Como explica Walter Benjamin, a história da arte desde as pinturas rupestres paleolíticas até o século XX descreve um arco que se desloca de uma concepção mágica do mundo (a arte como “valor de culto”) a uma concepção de mundo laica, materialista e, muitas vezes, consumista (a arte como “valor de exposição”).[3] Com efeito, no caso das culturas ditas populares, de base artesanal, e afastadas dos cânones da arte ocidental erudita, a produção artística está, em geral, muito mais próxima de um “valor de uso”, já que não existe, ou não predomina, nessas culturas, a separação rígida entre as artes aplicadas, ou decorativas, e as belas-artes, ou as artes do espírito, necessariamente desligadas de qualquer sentido utilitário. É o que permite a Fernando Rodrigues, assim como a muitos outros mestres artesãos do interior do Brasil, fazer móveis e esculturas sem mudar de registro mental ou material. Pois, pensando nas peças mostradas nesta exposição, por exemplo, tanto cadeiras e bancos quanto esculturas de girassóis de madeira ou de animais fantásticos têm estatuto semelhante. Fortemente geometrizados, e presos a bases que lhes dão apoio, os girassóis – que simbolizam o sol, a luz – se assemelham, de certa forma, a luminárias de mesa, isto é, a objetos utilitários. Já alguns bancos, por outro lado, cuja estrutura é feita de galhos muito ramificados, ou de raízes fasciculadas e aéreas, se assemelham a bichos com muitas patas ou tentáculos, transcendendo em muito a mera função de apoio. Arte e artesanato, portanto, não se separam claramente.
Tradicionalmente, a cultura artesanal é reiterativa, isto é, se baseia na repetição de procedimentos transmitidos de geração em geração, e que se mantêm razoavelmente estáveis ao longo do tempo, mudando muito pouco. Podemos perceber essa prática reiterativa em muitos dos móveis construídos por Seu Fernando, sobretudo nas cadeiras, todas com braços laterais, encostos vazados, com barras horizontais, e de perfil curvo, arrematados no alto em forma triangular. E, ainda, com bases também em formato triangular, que se apoiam no chão em apenas três pés, e não em quatro, como é mais comum, em razão da maior estabilidade. O que requer uma amarração também triangular entre os três pés, de modo a impedir que o peso da pessoa sentada os faça abrir. Assim, no caso das cadeiras, que são belíssimas, me parece haver uma certa padronização formal que se remete à prática reiterativa da cultura artesanal, que, por sua vez, está na origem histórica da serialização industrial e do design. E, pensando na recorrência do triângulo em vezs do quadrado na estrutura formal dessas peças, caberia refletir sobre a importância (ou não) da trindade cristã no imaginário visual dessas culturas ribeirinhas do Nordeste do Brasil, e seu impacto nos trabalhos de Fernando Rodrigues. Algo que requereria uma pesquisa mais aprofundada.
No caso dos bancos, contudo, a situação é diversa. Objetos menores e mais simples, eles se prestam a variações inventivas mais intensas, nos fazendo percebê-los como peças únicas – quase indivíduos, com personalidades próprias. Alguns mantêm a estrutura triangular das cadeiras, chegando ao chão em três pontos. Outros, no entanto, apresentam pés que são verdadeiras galhadas de raízes que se ramificam organicamente, como árvores de mangue – e algumas o são, efetivamente – semelhantes também à forma dos facheiros e mandacarus, tão característicos da paisagem da Ilha do Ferro. Pés que às vezes se alongam lateralmente demorando-se a chegar no chão, e transformando esses bancos em verdadeiras esculturas que se abrem no espaço, ou que abrem o espaço. Esses pés são ainda galhos. Ou melhor: galhos “anarquistas”, como os dos cajueiros nordestinos, que crescem deitados, ao contrário dos cajueiros plantados pelos portugueses na Guiné-Bissau em pelotões retilíneos, na imagem feita por João Cabral de Melo Neto, e que parecem querer desfilar militarmente para a autoridade.[4]
Essa variação formal muito rica que vemos nos bancos, assim como nas esculturas, se deve em grande medida ao fato de que Fernando Rodrigues não trabalhava com madeiras padronizadas. Encontrados na caatinga, ou trazidos pelo rio, esses “tocos de pau” retorcidos são, por suas próprias formas específicas, verdadeiros ativadores da imaginação do artista alagoano. Uma imaginação fértil, e muito mais animista do que cartesiana, como está claro. Isto é, uma imaginação que se coloca aquém dos processos de “desencantamento do mundo”, e por isso percebe as formas de vida que atravessam todas as coisas. Galhos e raízes que reexistem como móveis, ou como seres não exatamente reconhecíveis no mundo ordinário (chamado também de mundo existente). Criaturas fantásticas que convivem com a gente, e que por isso são homens e mulheres também, de alguma forma, como diz Fernando. Algo que se percebe lindamente no registro audiovisual chamado Desvirando bicho, captado por Celso Brandão com o artista em seu local de trabalho. Ali, ao narrar histórias que atravessam os modos de aparição e desaparição desses seres, ligados a feitiços e encantamentos, Fernando Rodrigues conta como humanos e bichos se transmutam um no outro, um pouco como nos relatos mitopoéticos de vários povos ameríndios, assim como no conto "Meu tio o Iauaretê", de Guimarães Rosa, por exemplo.
Emboral, Atuleimado, Cunhudo são alguns dos curiosos nomes de esculturas em forma de bichos presentes nessa mostra. Pássaros de chão, cães bigodudos, ameaçadores ou abobalhados, compõem um universo metamórfico de seres que também se misturam com as palavras escritas, muitas vezes talhadas ou pintadas em seus corpos de madeira. Analfabeto, ao mesmo tempo que um prolífico contador de histórias, Fernando Rodrigues amplia o sentido narrativo de seus trabalhos escultóricos acrescentando-lhes palavras, que atuam como se fossem tatuagens, mensagens cifradas presas à carne das criaturas.
Entre o final dos anos 1950 e o início dos 60, quando se mudou para a Bahia, Lina Bo Bardi se encantou com o pré-artesanato do Nordeste, “rico de seiva popular”, em suas palavras, porque carregado de um sentido de urgência, em tudo oposto à “consolação dos gadgets” de consumo que começavam a colonizar o país e o mundo.[5] Conhecimento manual que poderia indicar o caminho para um desenho industrial singularmente brasileiro, porque aderente às necessidades reais do país – tal como vemos, no caso da arquitetura, na belíssima escada do Solar do Unhão em Salvador (1959), projetada por Lina, em que uma rigorosa geometria moderna se combina aos preciosos encaixes de madeira dos carros de boi do sertão. Hoje sabemos que essa foi uma aposta derrotada historicamente, e que um verdadeiro design brasileiro nunca chegou a se formar nesses termos, como uma reinterpretação da nossa cultura popular. Mas ao olharmos para os trabalhos de Seu Fernando voltamos a vislumbrar essa ideia, segundo a qual a combinação de recursos escassos a uma criatividade fecunda não é sinal de exotismo, e sim o testemunho de uma arte que está muito perto da necessidade diária das pessoas, e que, por isso, reinventa as formas de vida. No caso de Fernando Rodrigues, com uma organicidade expressiva e um sentido de instabilidade controlada que nos lembram o quanto a nossa existência é múltipla e variada. Pois entre o ordinário e o fantástico não há, no fundo, fronteiras intransponíveis.
[1] O Espaço de Memória Artesão Fernando Rodrigues dos Santos, na Ilha do Ferro, é um pequeno museu de arte popular da Universidade Estadual de Alagoas que reúne as produções de bordado e artesanato em madeira do lugar.
[2] Ver o texto de Carmen Lúcia Dantas no livro Rio São Francisco: um ninho de culturas, organizado por ela própria em parceria com Douglas Apratto Tenório. Maceió: Edufal, 2010.
[3] Ver Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2013 (tradução de Gabriel Vallladão Silva). Organização de Márcio Seligmann-Silva. O ensaio é de 1935-36.
[4] João Cabral de Melo Neto, “Os cajueiros da Guiné-Bissau”, in Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 567.
[5] Lina Bo Bardi, Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p. 11.